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É Desporto

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13 de Julho, 2020

Yusra Mardini. Nadar para salvar a vida e acabar nos Jogos Olímpicos

Rui Pedro Silva

Yusra Mardini

Síria foi obrigada a nadar pela vida depois de a embarcação em que seguia com 20 refugiados ter naufragado. Durante três horas, juntamente com a irmã, garantiu a segurança de todos e desencadeou uma série de eventos que a levou a participar nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, um ano depois.

Yusra nasceu em Damasco a 5 de março de 1998. Filha de um treinador de natação, não foi preciso esperar muito até ser lançada à água para dar as primeiras braçadas. Tinha três anos e não sabia o que queria no futuro, mas tinha uma vida inteira pela frente.

Viver na Síria era garantido. Gostava do país, da cidade em que vivia, dos amigos, da escola. De tudo. Mas, dez dias depois de festejar o 13.º aniversário, tudo mudou com a guerra civil. No início, a novidade fazia com que o tema fosse recorrente na escola, mas com o passar dos meses tudo se tornou mais assustador.

Nunca abandonou a natação. Mas não foi fácil. Por vezes, estava a caminho de uma prova quando recebia um telefonema da mãe, preocupada com os bombardeamentos: «Volta para casa». Na piscina onde treinava habitualmente também não era fácil. «O teto ficou com buracos depois de um bombardeamento e tivemos de parar. Houve muitos jogadores de futebol que conhecia que morreram durante os bombardeamentos», revela.

A situação tornou-se insustentável. A casa onde viviam tinha sido destruída e Yusra e a irmã Sarah sentiram-se obrigadas a tomar uma decisão: abandonar a Síria. «Talvez morra pelo caminho, mas no meu país estou quase morta. Não há nada que possa fazer», recordou depois.

A decisão não foi simples. Os pais iam ficar para trás: «Tinha medo que algo acontecesse a uma de nós e do que isso faria à minha mãe».

 

A aventura que mudou tudo

A partida começou em agosto de 2015. Foram em direção ao Líbano e daí partiram para a Turquia. Pelo meio, passaram quatro dias no meio da floresta, sem comida, sem água e entregues à vontade de traficantes. Até ao dia em que, a troco de dinheiro, garantiram um barco que as levaria para a Grécia.

A embarcação, que não deveria levar mais do que seis ou sete pessoas, estava a abarrotar com vinte refugiados. Sem potência suficiente, o motor parou durante a viagem. As polícias marítimas ignoraram os pedidos de ajuda e Yusra e a irmã sentiram que estava na altura de agir, juntamente com as outras duas únicas pessoas que sabiam nadar.

Não foi fácil. Num primeiro momento, Yusra e Sarah discutiram enquanto a água continuava a entrar para o barco. A irmã mais velha não queria que Yusra também fosse para a água. Mas não tinha alternativa. «Pensei que seria uma grande vergonha se, sendo nadadora, morresse afogada», relembra numa das inúmeras entrevistas que deu.

«Não ia ficar ali, impávida, a queixar-me que me ia afogar. Se era para acontecer, ao menos afogava-me orgulhosa de mim e da minha irmã. Teria sido uma vergonha se as pessoas no barco morressem. Era gente que não sabia nadar», recorda.

O que se seguiu foi um esforço sobre-humano, especialmente para alguém com 1,68 metros e 53 quilos. Com uma corda atada a um dos pulsos, nadou durante três horas e meia. Quando ainda faltava meia hora para chegar a Lesbos, perdeu as forças e teve de regressar para dentro do barco, deixando apenas três pessoas a nadar: «Estava sem força e tinha tanto frio...»

 

O novo capítulo

O mais difícil estava feito. Por muito que pudesse acontecer a partir daí, os dois maiores desafios tinham sido ultrapassados: escapar à guerra civil e à travessia no Egeu com vida.

«É duro, foi muito difícil para toda a gente. Não censuro quem tenha chorado. Mas acho que às vezes temos de seguir em frente. Às vezes, os problemas podem ser o ponto de partida para uma mudança de vida. Quando tens um problema, este não te obriga a que fiques sentada a chorar como um bebé», garante.

Foi esta força redobrada que permitiu encarar o caminho até Berlim de forma tranquila, apesar da desinformação que havia em relação aos refugiados: «Muitas pessoas pensam que os refugiados não têm casa, que não têm nada. Às vezes, as pessoas ficavam surpreendidas quando me viam com um iPhone. Acham que vivemos numa espécie de deserto, mas não, tínhamos tudo como noutros países.»

Mardini passou pela Macedónia, Sérvia, Hungria, Viena e Munique antes de chegar à capital alemã em setembro de 2015. Na sua mente, só pensava em encontrar uma piscina para continuar a nadar. Afinal, era essa a sua maior paixão. Mas não em mar alto, a lutar pela sua vida, pela da irmã e pela de mais 18 refugiados, inclusivamente um rapaz de seis anos. Não, queria estar numa piscina em condições, sem receio das bombas que pudessem cair a qualquer instante.

 

De Berlim ao Rio de Janeiro

Yusra descobriu que havia um clube de natação perto do centro de refugiados: o Wasserfreunde Spandau 04. Um dia, decidiu ir lá com a irmã.

«Viram que a nossa técnica que era boa e aceitaram-nos», relembra Yusra. Com o passar das semanas, as marcas de uma viagem extenuante e de uma alimentação deficitária deixaram de se fazer sentir e a adolescente continuou a progredir e a dar nas vistas até que em março de 2016 entrou para uma lista de refugiados que poderiam fazer parte da equipa oficial para os Jogos Olímpicos.

Dois meses depois, a notícia chegou por e-mail. Tinha sido escolhida. Se até aí já era uma história que fazia sensação na imprensa internacional, o passo que faltava ser dado tornou tudo ainda mais mediático. Por isso, a síria de 18 anos aceitou o desafio de servir de exemplo.

«Quero mostrar a toda a gente que a seguir à dor e à tempestade chegam dias mais calmos. Não quero que desistam dos sonhos, quero que façam o que vos diz o coração, mesmo que pareça impossível», atira.

 

A pensar em Damasco

A vida de Yusra Mardini estava radicalmente diferente em relação ao que era um ano antes e a nadadora estava a caminho de participar nos 100 metros mariposa (40.ª no final e com uma eliminatória ganha) e nos 100 metros livres (45.ª), sem esquecer o passado.

«Sinto muito a falta de Damasco e sei que vou voltar um dia. Sinto a falta de todas as pessoas e quero muito que se lembrem de mim. Muitas pessoas ali esqueceram-se dos seus sonhos e espero que todos possam sonhar para alcançar algo bom no futuro», explica.

E vai mais longe: «Quero que as pessoas saibam que os refugiados são pessoas normais que perderam as casas. Não foi só porque queriam fugir, porque queriam ser refugiados».

Nas piscinas do Rio de Janeiro, por uns minutos, a história de vida foi relegada para segundo plano: «Na água não faz diferença se és refugiado, se és sírio, se és alemão. Na água estás só tu e os teus adversários». 

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