Yohann Diniz. Um francês traído pelo fado lusitano
Chegou a ter quase dois minutos de vantagem nos 50 quilómetros marcha mas não conseguiu superar o que lhe estava reservado: já depois de um descontrolo intestinal evidente, parou durante um minuto. Voltou à prova no grupo da frente até cair desamparado. Estava desidratado, sem força, e numa condição debilitadíssima. Não quis parar: o neto de português, que em 2014 foi campeão europeu com a bandeira portuguesa na mão, superou todos os limites (até os saudáveis) e terminou a prova no sétimo lugar.
Uma infância difícil
Yohann Diniz nasceu quando os pais tinham 16 anos. «Eram imaturos», afirma o marchador, justificando a razão para ter crescido com os avós: ele, um português chamado Xavier, ela, uma francesa chamada Roberte.
«O meu avô foi feito prisioneiro durante a guerra e conseguiu escapar. Em Epernay, conheceu a minha avó e decidiu ficar em França. Foi vítima de racismo na década de 50 e fazia tudo para esconder que era português. Trabalhou numa casa de champanhe e não sabia ler nem escrever bem: era a minha avó que tratava de tudo», começa por explicar Yohann Diniz.
Foram os avós que o criaram e pagaram a educação mas o francês viveu sempre de forma independente. «Não fazia boas escolhas, a minha vida estava sempre em perigo e por vezes entrei por caminhos muitos maus. Tentei algumas coisas pesadas, daquelas que te deixam paranóico», recorda.
Com 19 anos, teve de recomeçar do zero. Sem acabar o ensino secundário, foi chamado para o serviço militar e acabou a fazer trabalho voluntário em bairros problemáticos. Para garantir que não ficava no exército, começou a praticar marcha.
O desporto já o tinha acompanhado. Na escola fizera andebol e futebol mas não gostava da mentalidadeassociada. Com a marcha foi diferente. «Fiquei com o bichinho. Lembro-me da imagem de Perlov e Potashov nos Mundiais de 1991. Participaram com a camisola da Comunidade dos Estados Independentes e chegaram lado a lado. Um era russo, outro bielorrusso, cada um seguiu o seu caminho mas deram um exemplo de fraternização».
Orgulho português
O marchador tornou-se um atleta de sucesso. A altura em que era insultado e agredido pelos carros que passavam já era parte do passado e em 2014 sagrou-se campeão europeu pela terceira vez, em Zurique, com um novo recorde mundial que ainda se mantém: três horas, 32 minutos e 33 segundos.
O momento ficou marcado pelo que fez com a meta à vista. «Tive tempo para parar nos últimos 200 metros para procurar uma bandeira portuguesa, sabia que o recorde ia ser batido por uma larga margem. Queria homenagear os meus avós. Este ano acompanhei a minha avó até aos seus últimos minutos de vida», contou.
A atitude foi criticado em França mas Yohann Diniz não desarmou. «A França é multiétnica. A imagem da seleção também é assim: há negros, portugueses, franceses. Os meus familiares vieram para aqui porque o país precisava de todas estas comunidades para se reconstruir.»
Objetivo olímpico
Yohann Diniz tem três títulos europeus e em 2007 foi vice-campeão mundial. A espinha na garganta eram os Jogos Olímpicos: em Pequim desistiu com problemas físicos e em Londres foi desqualificado por ter recebido uma garrafa de água fora da zona de reabastecimento.
Para o Rio de Janeiro, já com 38 anos, a preparação foi mais meticulosa do que nunca. Para começar, abdicou de fazer a prova de 20 quilómetros. «Tenho problemas de alergia e é difícil recuperar nestas condições. Seria um grande risco. Os 50 quilómetros são uma distância que me agrada, que eu conheço muito bem. Os 20 quilómetros são mais aleatórios, podia hipotecar as minhas hipóteses.»
A preparação implicou um trabalho semanal entre 180 e 200 quilómetros. É menos do que fazia antes mas o treinador realça que o corpo já tem memória muscular e o que faz a menos na marcha compensa com ciclismo e natação.
O denominador comum é sempre o prazer pela marcha, garante Yohann. «O amor por esta disciplina, pelo esforço. É espiritual. Ficamos sozinhos durante o treino, quase cinco horas por dia. Tenho tempo para refletir, para escutar o meu corpo, os meus pés a bater no solo, a minha respiração, a calma, ouvir cantar os pássaros, sentir a brisa… São coisas que sempre me agradaram.»
No Rio de Janeiro, Yohann Diniz foi igual a si mesmo. Atacou logo no primeiro quilómetro. No fundo, ele já tinha avisado: «Sou um marchador linear, a diesel, que escolhe um ritmo e que depois o mantém até ao fim.»
Traído pelo azar
O problema foi o incontrolável. Os problemas intestinais apareceram ainda antes dos trinta quilómetros, quando tinha uma vantagem de um minuto e meio para a concorrência. Num primeiro momento, sentiu que tinha de parar, mas apenas o necessário para voltar à prova ao lado de Evan Dunfee. As forças faltavam e antes de uma curva, caiu desaparado para o lado esquerdo. Foi rodeado por voluntários mas insistiu em continuas.
Em evidentes problemas físicos, com pequenas pausas para tentar recuperar, fez o possível para terminar. «A marcha é 80% mental», costuma dizer. Por mais irresponsável medicamente que possa ter sido, Diniz mostrou a coragem e determinação para chegar ao fim. Nas redes sociais, dezenas de franceses imploravam por alguém que o impedisse de continuar. Diziam que já era uma lenda, que não precisava de continuar, que já o admiravam.
Yohann Diniz continuou. Depois da desistência em 2008 e da desqualificação, à terceira seria de vez. Acontecesse o que acontecesse, ia ter um lugar para contar aos netos. Foi sétimo, a 5'45'' de Matej Toth, e garantiu um diploma olímpico. Isso e um lugar na história dos Jogos Olímpicos, ao lado de Gabriela Andersen-Schiess, a suíça que concluiu a maratona em Los Angeles-1984 quase sem se aguentar em pé.
RPS