Uma viagem à NFL de joelhos com os New England Patriots
Foi a verdadeira experiência americana. Um jogo que obriga a reservar um dia inteiro, as aventuras pelo meio da segurança apertada, os protestos dos jogadores a Trump, dos adeptos aos jogadores e o vulcão adormecido que entrou em erupção por causa de Tom Brady.
O segredo está na antecipação
A logística para ir ver um jogo dos New England Patriots foi a mais complexa de sempre. Os bilhetes de avião foram comprados no dia em que a NFL anunciou o calendário: 21 de abril. Os bilhetes para o jogo foram comprados nos primeiros cinco minutos em que estiveram disponíveis, a 14 de julho.
O mais difícil estava feito (meia hora depois, o preço dos bilhetes tinha ficado já fora do alcance) mas havia passos que continuavam a ter de ser feitos, até porque os Patriots jogam praticamente no meio de um descampado entre Boston-Massachusetts e Providence-Rhode Island.
Não se pode ir a pé. Não se pode ir de autocarro. A melhor opção são os comboios fretados exclusivamente para o efeito e com lugares limitados que ficam à venda apenas na semana do jogo. Um sai de Boston, outro de Providence.
O jogo tem arranque marcado para a uma da tarde de um domingo – como manda a verdadeira tradição – e o comboio de Boston sai da South Station às 10h15 para uma viagem com três paragens e com uma duração a rondar os 60 minutos. É o segredo da antecipação que tanto jeito vai dar mais à frente.
Uma hora antes do horário de partida do comboio, a estação não deixa dúvidas. É dia de jogo. Notam-se as primeiras camisolas, sempre com Brady-12 e Gronkowski-87 em plano de destaque, e todo o tipo de adereços habituais. Com o aproximar da hora, a fila para a plataforma forma-se quase espontaneamente. No total, o comboio é composto por doze carruagens de passageiros (oito delas com dois andares) e tem capacidade para cerca de 1800 pessoas.
O jogo da mala
A estação do Gillette Stadium fica no meio do nada. Há um complexo comercial junto ao estádio mas de resto são hectares e hectares de… parques de estacionamento e árvores. A pequena estrada entre a paragem do comboio e o estádio tem duas linhas para que ninguém se perca mas basta seguir a multidão.
À nossa espera, estão vários responsáveis com sacos transparentes. Razão: a segurança na NFL é apertada, mais do que em qualquer outro evento desportivo nos Estados Unidos, e não se abrem exceções. Não há espaço para malas nem mochilas opacas.
É uma má notícia para quem, sem carro e inesperadamente, tem uma mala e fica sem grande alternativa. À boa maneira portuguesa, a primeira solução é a do desenrascanço: esvazia-se a mala, pede-se um segundo saco transparente e dobra-se muito bem a mala, quase para o tamanho de uma mão, e tenta-se entrar. Acesso negado! Não há facilitismo: se se quiser ver o jogo, não se pode levar a mala.
O complexo comercial não tem cacifos. Os seguranças dizem-nos que não há mesmo exceções e que a melhor opção é pedir a alguém que tenha carro. E acrescentam: «Esconder no parque de estacionamento não é opção, a polícia anda com os cães a farejar e se for preciso destroem o que encontram».
Resignamo-nos. Regressamos ao parque de estacionamento e pomos em prática tudo o que aprendemos com Cal Lightman em Lie to Me. No meio da verdadeira experiência americana de tailgating, com churrascos capazes de alimentar toda a lotação de grande parte dos estádios do campeonato português, tentamos estudar as expressões das pessoas e ver quem será de confiança e simpático o suficiente para acudir a um pedido cada vez mais desesperado de quem vê o tempo a passar e as opções a esgotarem-se.
Foi à primeira. Já com o carro estacionado e a montar a grelha junto ao porta-bagagens estão dois homens que não parecem ter qualquer relação familiar. «Desculpe, temos um pedido muito estranho para lhe fazer», começamos.
Não é fácil. Há toda uma logística que é preciso esclarecer. Explicamos o que se passa mas há detalhes que não podem passar em claro: Então e como é que nos devolvem? Então e se o jogo ficar resolvido muito cedo e eles se forem embora mais cedo? Então e como é que podemos entrar em contacto, tendo em conta que eles não têm serviço internacional de chamadas ativo para nos poderem ligar?
Podia parecer que o complicómetro estava ligado mas não. Todas as perguntas privilegiavam a garantia de que não haveria forma de correr mal. Tanto que um deles, um norte-americano de origem italiana com um sotaque que não enganaria ninguém, prontamente se ofereceu para nos ir levar a mala no dia seguinte.
Recusamos. Nós é que estávamos a dar o trabalho todo, se fosse preciso seríamos nós a ir onde tivesse de ser. Por esta altura, a garantia de que iam guardar a mala era certa. O alívio dominava-nos o espírito e a conversa de ocasião era dominada pelo tal italo-americano. Chamava-se Anthony e parecia o duplo de Salvatore no filme O Nome da Rosa. O outro, cujo nome voou durante a confusão, falava-nos da sua ida a Portugal e de como tinha comido tanto peixe. Pelo meio, ofereceram-nos todo o tipo de comida. «Comam, estejam à vontade. Sabemos que se diz que as pessoas de Boston não são simpáticas mas não é bem assim», dizia-nos Anthony.
Recusamos uma última vez a comida, depois de aceitarmos apenas um camarão, e despedimo-nos. Até ao final do jogo ou, na pior das hipóteses, ao dia seguinte na empresa de Anthony. «Tomem um cartão com o meu contacto. Eu amanhã de manhã vou jogar golfe mas se quiserem ir ter à minha empresa, a minha mulher Lucy estará lá para vos entregar a mala. Não há problema.»
Por fim, a bancada
Entrámos no estádio à segunda tentativa. Com bilhetes para o setor mais elevado, o percurso ainda é grande e a euforia entre os adeptos vai crescendo. Depois da derrota em casa na primeira jornada, espera-se que se possa dar a volta por cima.
Mas este não é um fim-de-semana qualquer. Dois dias antes, Donald Trump tinha atacado ferozmente a NFL e criticado os “filhos da mãe” dos jogadores que se ajoelhavam durante o hino, pedindo aos proprietários que os hereges fossem despedidos.
O tiro do presidente saiu pela culatra com a resposta dos jogadores. No Gillette Stadium, os Texans não se ajoelharam, limitando-se a entrelaçar os braços. Mas no lado contrário, cerca de quinze elementos da linha defensiva dos Patriots ficaram de joelhos e levaram boas secções do estádio ao desespero.
Os primeiros assobios surgiram ainda antes do hino, com gritos de “stand up”, mas a maior vaia, depois de um hino em que o verso que inclui a bandeira foi muito aplaudido, só aconteceu no final. Ali, como quando Colin Kaepernick começou o protesto contra a violência em 2016, a divisão do país estava patente. Para uns, a interpretação do protesto é um insulto à memória de todos os que defenderam a bandeira e a liberdade dos Estados Unidos em sucessivas guerras.
Este último aspeto torna-se ainda mais percetível pelo tipo de reação efusiva que se desperta na bancada sempre que há uma referência a militares na bancada ou veteranos de guerra.
Dinâmica do jogo
O futebol americano é um desporto de inverno mas naquele dia enganou muito bem. O calor era abrasador e difícil de aguentar até para portugueses. O protetor solar 50 fazia o possível para proteger e as águas frescas vendiam-se como… pãezinhos quentes a quatro dólares cada uma.
E uma não chegava. Nem mesmo duas. A corrida às águas, mais do que à cerveja, foi tão grande durante o jogo que por mais do que uma vez as vendas tiveram de ser suspensas mais do que uma vez. Durante esse período, foram entregues garrafas com água da torneira e, lemos nesse dia mais tarde, houve gente a protestar o pagamento de cinco dólares por essas garrafas.
Outra parte importante na bancada é sempre a análise do universo que nos rodeia. Como não podia deixar de ser, se os bilhetes eram os mais baratos para nós, também o seriam para adeptos dos Houston Texans que quisessem ir ver o jogo. Logo, a seis lugares à nossa esquerda, lá estavam três fãs em formato XXL que tinham a liberdade para se exprimir como quisessem, mais não seja porque… formato XXL.
Imediatamente à nossa esquerda estava um pai com um filho e duas filhas. O mais velho falava menos, estava submerso no sofrimento de um jogo muito mais sofrido do que ansiava, enquanto a mais nova bombardeava o pai com perguntas que até se assemelhavam ligeiramente ao estilo de «para quem nos está a ver pela primeira vez».
Essa foi a parte boa. Mesmo no terceiro anel, o jogo viu-se e entendeu-se bem. É certo que a ausência da linha amarela que marca o first down pode fazer alguma falta, mas tudo o resto corre na perfeição. O speaker resume cada jogada, explicando quem correu, quem fez o tackle, quantas jardas foram, quem vai fazer o pontapé ou punt e quem o vai receber.
E o sistema sonoro é perfeito, especialmente quando os árbitros explicam a decisão tomada.
Desalento crescente
Os New England Patriots conseguiram um touchdown no primeiro ataque que tiveram mas os Houston Texans nunca vacilaram na perseguição. E quando Tom Brady sofreu um fumble que acabou em touchdown, o silêncio no estádio foi esquisito. Curiosamente, nessa altura os adeptos dos Texans tinham ido «abastecer». «Bom, ao menos aqueles tipos não estão aqui para nos festejar na cara», desabafou o pai ao nosso lado.
O sentimento geral era esse. Esse o do calor abrasador, claro está. Assim que foi intervalo, o terceiro anel ficou despido com gente à procura da sombra. Não fomos exceção. As roupas dos adeptos pareciam pinturas abstratas que refletiam os pontos de maior suor. Ninguém destoava, estávamos todos juntos nesta luta e não havia um único metro quadrado de sombra disponível.
Talvez por isso tenha havido muita gente a perder o início da segunda parte. Aí, apesar de estarem a perder, os Texans aproveitaram as fragilidades defensivas dos Patriots e facilmente passaram para a frente do marcador. Tom Brady nem começou mal, com um passe para o touchdown de Brandin Cooks mas o sinal mais era de Houston.
O tempo passava e os Patriots deixaram de conseguir avançar. Tom Brady falhou o first down em dois ataques consecutivos e à nossa frente uma adepta perdia a paciência, exigindo que a equipa arriscasse na quarta tentativa em vez de devolver a bola. O certo é que os Texans estavam a vencer 33-28 e o quarterback com cinco Super Bowls ia ter de fazer magia para dar a vitória com menos de dois minutos e meio para o fim e cerca de 80 jardas para avançar.
O acordar do vulcão
Por esta altura já estávamos separados. Não sabíamos qual seria o nível de vontade de escapar ao trânsito dos nossos bons samaritanos e seria sempre preferível recuperar a mala no próprio dia. Havia muita gente a ir embora. Por muito que os Patriots tenham vencido a Super Bowl em fevereiro com uma recuperação do outro mundo, nem mesmo num estado tão irlandês como o Massachusetts se acredita em milagres sucessivos.
E, de facto, tivessem os Houston Texans avançado duas jardas em vez de uma na última jogada e tudo seria diferente. Seria o suficiente para deixar o relógio correr e impedir que Tom Brady voltasse a ter uma oportunidade. Mas não aconteceu.
O quarterback de 40 anos assumiu a responsabilidade e ofereceu-nos um momento inesquecível. A sucessão de jogadas, com calafrios com um fumble recuperado e uma quase interceção misturados com avanços in extremis de Rob Gronkowski, foram acordando o vulcão. De repente, passou-se a acreditar. Continuava a ser muito improvável mas ali estava Tom Brady, considerado por muitos o melhor quarterback de sempre, a desenhar, qual Picasso, mais uma reviravolta.
Foram duas jogadas consecutivas em menos de 25 segundos. Primeiro, um passe para Amendola que fez a equipa 27 jardas, já para o meio-campo de Houston. Logo de seguida, sem tempo para mais, Brady fez um passe na diagonal para o lado esquerda da zona de touchdown onde Brandin Cooks saltou, levou com o braço do adversário no capacete e ainda assim teve o discernimento de agarrar a bola, assentar os dois pés na zona de touchdown e cair para fora do campo.
O Gilette Stadium ficou mais vivo do que nunca. Gritos, expressões de incredulidade e corpos que tremiam, metade adormecidos pelo calor, metade excitados por Tom Brady ter acabado de fazer das suas. Subitamente, parecíamos estar num verso do anúncio da Galp no Euro-2004. «Um abraço aqui, um abraço ali. Abraço toda a gente, abraço quem nunca vi». Só não eram abraços, eram high fives. E nós não fugimos à regra, primeiro com a insatisfeita mulher da fila da frente, depois com o filho mais novo da família ao lado.
Lá fora, já à porta do carro, a euforia expressa-se através do telemóvel. A peregrinação de regresso a casa foi interrompida pelos ruídos promissores e o ecrã dos smartphones transforma-se em janela para a glória. «Já esta na linha das 27 jardas!», avisam, precipitando que há uma oportunidade.
Duplo… e triplo festejo
O passe de Brady para Cooks é tão espetacular quanto duvidoso. E, como não podia deixar de ser, os árbitros anunciaram que a jogada ia ser revista. Subitamente, num dia em que não correu uma brisa para ajudar a combater o calor, parecemos ser invadidos por ventos frios. Será que vem aí uma desilusão?
Como sempre, surge o anúncio: «E agora, no ecrã gigante, vamos ver exatamente as mesmas imagens que os árbitros estão a ver». E aí está: o passe, a receção, um pé, dois pés. E o vulcão volta a explodir, festejando quase como da primeira vez.
Mas há novo vento. A receção foi boa, mas a imagem do ecrã gigante agora centra-se na queda: será que manteve sempre a posse da bola ao cair? Há rostos mais inseguros, expressões mais desanimadas e outras que não chegaram a parecer o que se passava. Seja como for, por essa altura já os árbitros estavam prestes a anunciar a decisão, que confirma o touchdown. E, mais uma vez, o vulcão faz-se ouvir.
Faltavam 23 segundos e a vitória estava no papo. Ou pelo menos parecia. Os Houston Texans não estavam dispostos a cair sem dar uma última tentativa de luta e Deshaun Watson tentou um hail mary. O que se passou a seguir foi incrível: bola na molhada e tornou-se impercetível perceber para onde tinha ido. Sabem o que se diz sobre aqueles momentos em que tudo é tão rápido que nem se consegue perceber o que aconteceu? Ali foi precisamente o oposto.
Por uma fração de segundo, o estádio ficou em suspenso.Os corações das 65878 pessoas que estavam a assistir ao jogo saltaram um batimento e só voltaram a reagir depois de, no meio da confusão, Duron Harmon ter saído a correr da endzone com a bola. E aí, sim, os festejos foram definitivos.
O alívio completo
A euforia manteve-se na saída do estádio. Do terceiro anel até ao piso do parque de estacionamento, é preciso descer quase sete andares, cada um com duas rampas de uns 30 metros. Ouve-se de tudo, mas sobretudo vénias a Tom Brady.
Já lá em baixo, dois polícias de organizações diferentes são gozados por uns adeptos. «And you missed it», gritam, apontando com o dedo, fazendo referência ao momento inacreditável a que tinham acabado de assistir e ao qual os polícias, por estarem a trabalhar, não tinham tido a oportunidade de ver. Com desportivismo, reagiram com sorrisos. Afinal, o dia de trabalho acaba muito melhor quando um estádio cheio sai bem disposto do que com azia por uma derrota.
Novamente juntos, o tempo urge. O comboio regressa a Boston meia hora depois do final do jogo. O carro dos samaritanos ainda lá está. Mas e eles, será que demoram muito? Depois de trocarmos sensações sobre como foram vividos aqueles últimos minutos, ao fundo, aparece a dupla. Vem bem disposta. Anthony ri-se, diz que viemos dar sorte e conta que fez uma aposta: «Eu disse-lhe que ela ia ter tanto medo que vinha para o carro ao intervalo».
Agradecemos uma e outra vez. O que pode ter sido uma simples ação para eles, para nós teve um significado maior. E agora, com a mala na posse e a vitória nas mãos, o alívio era completo. Estávamos de volta ao comboio e as conversas tinham um denominador comum. Éramos todos testemunhas de Brady.
RPS/SSM