Uma ode a Bobby Robson
Como é que se explica Bobby Robson a alguém que não conhece uma dimensão de futebol diferente da atual? A alguém que acha que o futebol é um mundo de trincheiras, em que o elogio alheio é um primeiro passo para um crime de lesa pátria e que o cavalheirismo e fair-play não só levam a um ambiente mais saudável como não prejudicam em nada os objetivos do próprio clube ou os limites da rivalidade?
Bobby Robson era, até literalmente, um Sir. Era um cavalheiro, um homem que chegou a Portugal com 59 anos e mesmo assim conseguiu ser uma lufada de ar fresco. Bobby Robson é um sinónimo do futebol genuíno, sobretudo para mim, que tinha apenas sete anos quando o britânico que fugia ao estereótipo chegou a Alvalade.
É difícil para mim pensar numa era de futebol português mais antiga do que com Bobby Robson no Sporting, Carlos Alberto Silva no FC Porto e Toni no Benfica. Tenho memórias mais antigas de futebol mas essas são as primeiras consolidadas. E, como todos sabemos, as primeiras são sempre mais marcantes.
Lembro-me de ouvir falar, mal, de Bobby Robson. Nas festas familiares, havia sempre um primo, mais velho, que vivia em Alcântara e que me falava que o inglês passava as noites durante a semana nos bares lisboetas a pedir whiskey atrás de whiskey. Gozava com esta alegada faceta alcoólica e com o português arranhado de um treinador que parece ter dado sempre muito mais ao futebol do que o futebol lhe deu a ele.
Bobby Robson foi atraiçoado vezes e vezes sem conta na carreira. Foram poucos os sítios onde conseguiu ser plena e verdadeiramente feliz. Foi o selecionador inglês pós-1966 com mais sucesso mas foi vítima da intervenção “divina” de Maradona e de uma imprensa britânica sedenta de sangue. Foi o treinador de um Sporting que ameaçava o título mas foi peão da precipitação de Sousa Cintra, que sonhava com Carlos Queiroz com o mesmo entusiasmos que, anos mais tarde, Josep Lluís Núñez o viria a fazer com Luis Van Gaal.
O treinador parecia dar tudo o que tinha e em troca recebia sempre um pouco abaixo do mínimo. O drama e a tragédia acompanharam Robson por todo o lado, mas nenhuma paragem terá demonstrado uma força tão negra como a portuguesa. Em Alvalade, o seu jantar de despedida levou ao trágico acidente de Cherbakov, interrompendo prematuramente uma carreira que se adivinhava brilhante. Nas Antas, na primeira época completa, a primeira do penta, teve de lidar com a morte de Rui Filipe, vítima de um acidente de viação. Foi também no Porto que começou a perceber que a saúde não perdia uma oportunidade para o apunhalar.
Um treinador que gostava de falar sobre futebol
Bobby Robson podia ter uma relação atribulada com a imprensa mas era um treinador que falava do jogo. Que gostava de falar sobre as decisões, sobre o que tinha acontecido. A forma como abordou o Benfica-FC Porto de 1994 (2-0), célebre jogo em que Fernando Couto foi expulso depois de ter dado uma cotovelada a Mozer, tornou-se parte do meu imaginário… e do de muitos que presenciaram aquele momento e puderam revivê-lo repetidamente com a cassete do final de época.
Com um João Pinto visivelmente aborrecido ao lado, Robson arranhou o português para explicar a decisão de não ter reequilibrado o setor defensivo da equipa, já depois de Toni ter elogiado, em pleno relvado, a forma brilhante com que os dragões tinham lutado pelo jogo.
«Eu penso que onze jogadores contra dez jogadores muito difícil no Benfica. Primeira parte… dois equipas igual. Talvez igual. Pouco diferentes. Diferença foi Fernando Couto. Resultado: Mozer dois, Fernando Couto zero. A disciplina de Fernando Couto é muito importante. Com dez jogadores sempre, sempre difícil. Segunda parte, grande jogo, dois equipas, ataque, defesa, ataque, defesa. No diferença, dez jogadores, onze jogadores. Segunda parte, seis, seis oportunidades. Intervalo: eu decisão. Mais defesa? Jorge Costa? Ou igual? Minha decisão: três contra três: João Pinto, Aloísio, Rui Jorge contra três – João Pinto, Ailton, Yuran. Muita coragem, muita coragem, equipa muita coragem. Falei equipa ao intervalo, muita coragem. Um-zero, ok. Ataque. Um golo, um-um. No Jorge Costa, Jorge Costa banco».
O português foi macarrónico mas perfeitamente percetível, apesar de polvilhado com pequenas palavras em inglês. Aqui, Robson decidiu largar o português e soltar a ideia final em inglês, como se o coração palpitasse com a emoção do que tinha para dizer e do que tinha acabado de ver: «Por isso tentámos retirar algo do jogo, percebe? Mas com o segundo golo… kaput!».
Robson era isto mesmo. Dedicado à causa, às componentes do jogo, às decisões, ao relacionamento com os jogadores. Naturalmente, nem tudo foi um mar de rosas. Vujacic, por exemplo, terá sido uma das maiores vozes críticas ao trabalho do inglês mas a esmagadora maioria das opiniões foram sempre a de um treinador com uma faceta humana acima da média.
Um nome estranhamente consensual
Como é que se explica Bobby Robson a alguém que não conhece uma dimensão de futebol diferente da atual? Dizendo que dificilmente terá havido um treinador tão acarinhado em Portugal – durante e depois da sua passagem – por todos os adeptos como Robson. Dizendo que o seu despedimento sempre foi visto como o maior erro da presidência de Sousa Cintra, dizendo que os sportinguistas ainda hoje falam dele com carinho, dizendo que os portistas nunca o esquecerão e que os benfiquistas, que chegaram a tê-lo como promessa eleitoral (Abílio Rodrigues em 1997 na campanha contra João Vale e Azevedo e Luís Tadeu), reconhecem que foi um dos grandes nomes que passou por Portugal.
Bobby Robson não foi apenas um dos bons. Foi um dos melhores. Não só em Portugal como pelo mundo inteiro. Era genuíno, preocupado, sorridente, cativante, genial e sentia-se verdadeiramente afetado com as faltas de respeito de que foi sendo alvo, tanto das estruturas diretivas como das imprensas mais sanguinárias. Mas nunca deixou de gostar daquilo que fazia. Nunca deixou de ser a criança que fazia dezenas de quilómetros todos os domingos com o pai para ir ver os jogos do Newcastle. Continuou a deixar-se surpreender com o génio dos seus jogadores - como a deliciosa reação ao golo de Ronaldo em Compostela - ou a mostrar-se verdadeiramente desiludido com a forma com que os seus antigos jogadores do Sporting perderam a cabeça nas Antas num jogo em que os leões acabaram com oito.
Era um apaixonado pelo jogo, um segundo pai para muitos jogadores e não os esquecia mesmo quando estes saíam da sua asa. Robson nunca deixou de se preocupar, nunca deixou de ser igual a si mesmo. Especial. Sabia que as paixões mais marcantes podem ser aquelas que não são correspondidas, mas nunca tirou o pé do acelerador. Seguiu sempre em velocidade máxima atrás da ilusão de viver feliz até ao último suspiro, entre relva, bolas, e barulho de chuteiras a pisar o tijolo no túnel dos balneários enquanto já se ouve o burburinho de milhares de adeptos nas bancadas.
Bobby Robson dizia que os treinadores eram como os artistas. Só eram verdadeiramente reconhecidos depois de mortos. José Mourinho comentou que uma pessoa só morre quando morre também a última pessoa que o amou. Estão os dois errados. Robson conseguiu a proeza de ser verdadeiramente admirado muito antes de morrer e de ter atingido um estatuto indiferente à passagem de gerações.
Por tudo isto, porque Robson será sempre um homem especial, de sorriso fácil, generoso e sinónimo do lado bom de futebol, o documentário disponível no Netflix foi um murro no estômago. Voltar a ver a vulnerabilidade de um homem nos seus últimos dias de vida, com um aspeto fraco, abatido e, ainda assim, mantendo a preocupação com os “filhos” que acolheu no passado, foi um castigo. Perceber que aquele homem viu naquele jogo de homenagem o seu último suspiro antes de morrer, menos de uma semana depois, é um teste à nossa resistência.
Felizmente, o próprio documentário poupou-nos à maldade de terminar com aquele triste fim, fazendo-nos recuar novamente para a memória que sempre teremos dele. A de um homem bom, cavalheiro, que gostava demasiado de futebol para fazer algo que o pudesse prejudicar. Um Sir. Não de Inglaterra mas de todo o universo futebolístico.