Tommie Smith e John Carlos. O protesto olímpico mais famoso
Especial Jogos Olímpicos (México-1968)
Norte-americanos conquistaram as medalhas de ouro e de bronze nos 200 metros dos Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968, mas foi o protesto contra a segregação racial nos Estados Unidos durante a cerimónia protocolar que foi imortalizado. Australiano Peter Norman, medalha de prata, também participou, ainda que de forma mais discreta.
É uma das imagens mais famosas de sempre. Não mostra um atleta a cruzar a meta, não é um grande momento de fair-play ou desportivismo, nem evidencia uma emoção forte, de alegria ou tristeza, provocado pela tensão do desporto. Ao invés, acontece durante a cerimónia protocolar, enquanto tocava o hino dos Estados Unidos. É a única cerimónia dos hinos que conseguiu ofuscar o que se passou em pista.
A página online dos Jogos Olímpicos recorda a final dos 200 metros de 1968 com algumas reticências. Depois de o título e a entrada falarem sobre o que aconteceu, apenas no último parágrafo há uma referência real ao protesto: «O brilhantismo dos três atletas foi ofuscado pelo protesto no pódio, ao qual Norman se juntou. Foi a única edição dos Jogos em que cada um deles participou».
A frase tem razão de ser, ainda assim, uma vez que a prova dos 200 metros foi verdadeiramente emocionante e com um patamar de qualidade muito elevado. Tommie Smith foi o primeiro a dar nas vistas a estabelecer um novo recorde olímpico (20,37 segundos) na segunda série das eliminatórias, mas Peter Norman roubou-lhe duas décimas instantes depois, melhorando a marca para 20,17 segundos. Nas meias-finais as marcas voltaram a cair, com John Carlos a fixar o recorde em 20,12 segundos, e aumentaram o suspense para a final.
John Carlos saiu mais rápido e liderava no final dos primeiros 100 metros, mas não conseguiu manter o ritmo e foi ultrapassado pelos dois colegas de pódio: Tommie Smith continuou disparado até fixar um novo recorde mundial, tornando-se o primeiro de sempre a baixar da marca dos 20 segundos (19,83), enquanto o australiano Peter Norman fez uma prova de trás para a frente, saltando da sexta posição para a medalha de prata (20,06).
Um recorde do mundo tinha caído – e duraria 11 anos -, mas a grande surpresa da dupla norte-americana estava reservada para o momento do hino dos Estados Unidos. Os dois atletas curvaram a cabeça e ergueram um braço com o punho cerrado, replicando aquilo que muitos encararam como sendo a saudação dos Black Power.
Mas há muitos pormenores por trás daquela imagem imortal. Os dois atletas estavam descalços, utilizando meias pretas para simbolizar a pobreza dos negros. Smith tinha um cachecol para representar o orgulho negro e Carlos tinha o fecho do casaco para baixo em solidariedade com os trabalhadores de colarinho azul dos Estados Unidos. Há mais: Carlos tinha um colar em memória de «todos os indivíduos que foram linchados ou mortos e pelos quais ninguém disse uma oração, ou enforcados e torturados».
Mesmo a parte mais famosa, dos punhos cerrados com os braços erguidos, tem um esquecimento por trás. O objetivo seria calçar luvas pretas mas John Carlos esqueceu-se das suas na Aldeia Olímpica. Foi aqui que Norman entrou em cena e sugeriu que o medalha de bronze pudesse usar a luva esquerda de Tommie Smith. É por isso que, na imagem, um atleta surge com o braço direito levantado – fiel à saudação Black Power – e John Carlos improvisa com o braço esquerdo.
Tommie Smith e John Carlos, aqui acompanhados por Peter Norman, envergaram também um selo de direitos humanos nos seus casacos. O australiano também já se tinha manifestado contra a discriminação racial na Austrália.
O protesto teve repercussões gigantescas. O Comité Olímpico Internacional exigiu que os atletas norte-americanos abandonassem a Aldeia Olímpica e só tiveram sucesso depois de ameaçar banir toda a equipa de atletismo. Tommie Smith fez questão de evidenciar a hipocrisia que se vivia nos Estados Unidos, um pouco à imagem do que Jesse Owens já tinha feito décadas antes. No original, e em inglês, para evitar problemas na singularidade da tradução e dos termos utilizados, o campeão olímpico disse: «If I win, I am American, not a black American. But if I did something bad, then they would say I am a Negro. We are black and we are proud of being black. Black America will understand what we did tonight».
Os três atletas sofreram na pele as consequências dos seus protestos quando regressaram a casa. Mesmo na Austrália, o governo fez questão de pressionar Peter Norman pelo sucedido. Dos três, Tommie Smith foi o único que continuou de forma relevante no mundo do desporto, ao representar os Cincinnati Bengals na NFL.
Norman pode ter ficado mais esquecido na importância deste protesto, orquestrado pela dupla norte-americana, mas Tommie Smith e John Carlos fizeram questão de viajar até à Austrália para o funeral do seu colega de protesto, em 2006. Afinal, tinham protagonizado juntos um dos protestos mais mediáticos na história – desportiva e não só – do século XX.