Thomas Voeckler. «As pessoas vão sempre ver-me como o tipo do Tour de France»
Francês cruzou a meta em Paris pela última vez na carreira. Agora, com 38 anos, decidiu fazer cair o pano de uma carreira repleta de memórias passadas na Volta a França em bicicleta. Recordemos a entrevista dada num hotel em Vilamoura, em 2014, durante a Volta ao Algarve.
O pódio do Tour ali tão perto…
*publicado originalmente na edição de 22 de fevereiro de 2014 do jornal i
Thomas Voeckler é uma figura do ciclismo mundial. A prestação durante o Tour em 2011, em que andou dez dias de amarelo e resistiu na liderança, etapa após etapa, quando todos previam que não teria qualquer hipótese, fez dele uma espécie de mártir. Um ciclista que ganhou a simpatia de muitos, que sofreram com ele nas montanhas dos Pirenéus e novamente nos Alpes quando, após um erro de estratégia, perdeu por fim o primeiro lugar.
As expressões que faz, as caretas, a forma de sofrer e pedalar em cima da bicicleta fazem doseu estilo um dos mais reconhecíveis do pelotão. Aos 34 anos, corre em Portugal para recuperar a forma numa época que começou com uma clavícula partida. Depois de ter sido último na primeira etapa, Voeckler falou ao i num quarto de hotel enquanto recebia a habitual massagem do fim da etapa.
O francês pode ser um homem fechado, que não se presta a emboscadas de fãs no início das etapas para tirar fotografias, mas falou sem inibições. O gravador começou por estar em cima da maca, mas depressa sugeriu que o puséssemos em cima do peito para que a captação fosse melhor. Foi assim, após matar no peito, que se deu o pontapé (pedalada, neste caso) de saída para a conversa.
Nasceu em 1979. Quais são as primeiras recordações de ciclismo?
As primeiras memórias são sobre o Tour de France, claro. E comecei a fazer ciclismo depois de tentar vários desportos. O ciclismo era aquele que me dava mais prazer e continuei. Como cresci nas Antilhas Francesas [Martinica] só conseguia ver algumas fotografias ou imagens do Tour na televisão, e foi assim...
Que idade tinha quando começou?
Onze anos.
Qual é o primeiro vencedor do Tour de France de que se lembra?
Foi o Miguel Indurain. A sua segunda vitória, acho, em 1992.
Quando começou a fazer ciclismo, dizia aos amigos que queria ser como alguém em específico?
Nos primeiros anos foi um bocado difícil porque não era muito forte. Desde o meu segundo ano, comecei a pensar imediatamente em ser profissional mas também sabia que não ia ser nada fácil. Por isso tentei fazer tudo bem na escola e estudar para não perder tudo caso o ciclismo não resultasse. Felizmente, consegui tornar-me profissional, em 2001.
Era um bom aluno?
Não, não. Não era mau, mas fazia só o mínimo.
O que é mais importante para si? As suas escolhas passadas contam-nos que não se preocupa só com dinheiro. Em tempos já recusou propostas mais vantajosas...
Sim, isso é outra coisa. Depende da forma como vemos as diferentes coisas que nos rodeiam. Eu estou na mesma equipa desde que sou profissional e o importante na vida é ser feliz. O dinheiro, claro, é importante, porque é este o nosso trabalho e toda a gente no ciclismo quer ter tanto quanto possível, mas tens de escolher ser feliz e ter boas condições. Quando se muda de equipa tem de haver uma motivação forte para isso. Quando acordo de manhã, não é esse o meu objetivo. Quero sentir-me orgulhoso daquilo que faço, é isso o mais importante.
A Europcar é como uma família?
Bem, a palavra talvez seja demasiado forte porque estás num mundo de profissionais. Não sei como é nas outras equipas mas quando falo com outros ciclistas posso dizer que não é nada mau na Europcar. Quando tens uma equipa e no final do ano não sabes se tens parceiros ou patrocinadores para o ano seguinte... Quando os ciclistas ficam todos juntos numa equipa, sem ir um para aqui e outro para ali... é um bom sinal de solidariedade.
Disse numa entrevista que nunca esperou vencer o Tour em 2011. Mas apercebeu-se, etapa após etapa, de que o entusiasmo dos adeptos crescia e havia cada vez mais gente a torcer por si.
É verdade que não esperava vencer o Tour, mas com o passar dos dias comecei a pensar que podia alcançar um bom resultado, talvez o pódio. Fiquei em quarto e acho que se não tivesse cometido um erro na etapa do Alp D’Huez talvez conseguisse ficar em segundo. Mas primeiro não. Pode sempre dizer-se “talvez, talvez”, mas honestamente acho que poderia ter ficado em segundo, mas não em primeiro.
O erro de que fala foi no momento em que saiu do grupo?
Sim, esse. Nesse momento pensei que o Evans tinha um problema físico e não mecânico. Não sabia que atrás de mim a equipa dele estava a trabalhar muito bem. Se soubesse, teria esperado pelo pelotão e terminaria com eles e ficava em segundo. Mas segundo ou quarto não é o que interessa em Paris. Não é isso que muda a minha vida. O primeiro lugar do pódio é importante, mas segundo ou quarto é mais ou menos o mesmo.
E é possível que as pessoas se lembrem muito mais da sua prestação do que quem ficou em segundo ou em terceiro, não?
Sim, acho que é isso. Se olhares para as coisas, as pessoas em França e em todo o mundo, tirando a Austrália, vão dizer que se lembram mais de mim nesse Tour do que de Cadel Evans. Mas se pudesse escolher neste momento vencer o Tour envergando a camisola apenas no último dia ou estar dez dias de amarelo como eu estive, escolheria como o Cadel Evans e ficar com a amarela apenas no fim, claro.
Foi pai em cima desse Tour.
Sim, a prova começou no sábado e o meu segundo filho nasceu na noite de terça para quarta-feira, mesmo antes da prova.
Isso foi uma motivação?
Sim, acho que sim. Não é algo que se possa ver no computador ou assim. Eu acho que sim, não é possível mostrar que foi, mas é algo que vive na nossa mente.
Perdeu a amarela numa etapa ganha por um colega de equipa, Pierre Rolland. Na altura, quando tentaram dar-lhe a notícia, mostrou-se um pouco despreocupado com quem teria sido o vencedor. A vitória de um colega ajudou a aliviar a frustração?
Não. Tenho de ser honesto, não. É claro que fiquei desapontado, mas contente pela equipa. Perdi a camisola por causa de um erro tático, de uma opção errada. Quem diz que a vitória de um colega ajuda a atenuar isso não é honesto. É claro que se pode ficar contente pela equipa, mas isso não apaga a camisola perdida.
Acha que será sempre lembrado por essas etapas?
Sim, sim. Desde 2004, em que vesti a camisola durante dez dias, até hoje, acho que posso dizer que fiz coisas que não foram assim tão más. E coisas boas, mesmo. Sem ser no Tour, acho que ganhei 15 corridas na minha carreira, mas as pessoas falam sempre mais do Tour de France. Venci quatro etapas [entre 2009, 2010 e 2012], conquistei a camisola da montanha, estive 20 dias de amarelo [dez em 2004, dez em 2011], por isso as pessoas vão sempre ver-me como o ‘tipo do Tour de France’.
Aos 34, o que ainda podemos esperar de si?
Que me vejam a desfrutar de andar de bicicleta e andar no ciclismo. De 2009 a 2012 tive quatro anos que foram bons para mim e em 2013 o Tour não foi agradável. Não consegui fazer aquilo que queria. Por isso, em 2014 quero apenas tirar prazer do que faço. Não foi o que aconteceu em 2013.
Começou este ano da pior maneira possível, a partir uma clavícula num treino na Austrália. Já recuperou totalmente?
Não, não. A clavícula está bem, mas ainda vou precisar de mais dois meses para ficar realmente em forma. É uma pena não estar bem aqui em Portugal, procurando treinar apenas e não cair. Será impossível estar a 100% nas próximas semanas. Talvez a 90%, mas no nível de competição em que estamos 90% não é suficiente para ganhar. É preciso aparecer ao máximo. E eu já tenho 34 anos, preciso de algumas semanas para recuperar.
França tem uma nova geração de ciclistas com muita qualidade. O que acha que podemos esperar nos próximos anos?
Espero que tenhamos um vencedor do Tour. Para os sprints, também temos três ciclistas com muito talento. Na Europcar há o Bryan Coquard, mas há sprinters muito bons também nas outras equipas francesas. Por isso, acho que serão capazes de vencer etapas nas grandes corridas do calendário e talvez conseguir uma boa classificação na geral, como o Pierre Rolland nos últimos anos. Em 2014, talvez seja possível fazer melhor ainda.
E os ciclistas portugueses?
Já conheço o Rui Costa desde que passou a profissional. Quando te tornas campeão do mundo não há comentários a fazer. Apenas felicitar. Não posso falar muito sobre outros corredores portugueses porque não os conheço muito bem. Paulinho... Tiago Machado... Não fiz corridas em Portugal, excepto em 2008 [Volta ao Distrito de Santarém, Voeckler foi 16.º, atrás de Tiago Machado, Chris Froome foi sexto, Rui Costa 114.º].
Uma pequena provocação agora. É muito famoso pelas expressões que faz...
Sim...
... durante as etapas. Acha que conseguiria bater Jean Dujardin [francês que ganhou o Óscar de melhor actor pela participação em “O Artista”] por um papel num filme mudo?
[Risos] Talvez... essa pergunta é original. Às vezes vejo imagens minhas na televisão e penso que tenho de parar de fazer tantas caretas, mas quando se está a sofrer tanto só pensamos em dar ao pedal e ultrapassar as dificuldades. É a minha maneira de sofrer e de andar no ciclismo. Não vou mudar para tornar as pessoas mais felizes. É apenas a minha forma...
As pessoas até são capazes de gostar. É uma coisa muito sua já...
Sim, mas todos os ciclistas dizem que eu exagero. Mas na verdade limito-me a ser eu. Não me importa o que os outros dizem.
RPS