Tavriya Simferopol. O primeiro campeão ucraniano da era moderna
Um treinador marcado por uma vida de tragédia, um herói com nome de goleador e uma história manchada pela guerra. Esta é a história do Tavriya Simferopol, o primeiro campeão ucraniano da era moderna, que levou a melhor sobre a maior potência futebolística de toda a União Soviética: o Dínamo Kiev.
A surpresa que veio da Crimeia
A queda da União Soviética levou a que a república da Ucrânia organizasse o seu primeiro campeonato em 1992. Com o objetivo de ter representantes nas competições da UEFA logo em 1992/93, os responsáveis organizaram uma primeira edição que decorreu entre 6 de março e 21 de junho. Com vinte equipas divididas em dois grupos, a liga tinha no Dínamo Kiev a sua principal pérola mas foi o Tavriya Simferopol, acabado de sair do segundo escalão soviético, a entrar na história.
Seis das vinte equipas tinham atuado no principal escalão soviético na época anterior. O Dínamo Kiev, com 13 títulos, era o clube mais dominador na antiga união e esperava-se que pudesse manter o estatuto na Ucrânia. A jogar a última edição da Taça dos Campeões Europeus – defrontou o Benfica nessa edição -, não se pode dizer que a equipa tenha sido afetada pelo excesso de jogos.
Tanto o Dínamo Kiev como o Tavriya Simferopol dominaram por completo os seus grupos. O primeiro estava no B, somou 13 triunfos, quatro empates e apenas uma derrota; o segundo, no grupo A, também só perdeu uma vez e venceu onze vezes, sofrendo apenas nove golos em 18 jogos.
O formato da competição obrigava a que fosse disputada uma final a uma mão para decidir o campeão. O encontro decisivo, e histórico para o país, foi agendado para 21 de junho, em Lviv.
Ausências de peso
Nenhuma equipa pôde dizer que estava na máxima força. Além dos jogadores suspensos, o Tavriya não contou com o seu principal goleador, Yuri Hudymenko (12 golos), a contas com uma indisposição, enquanto o Dínamo Kiev tinha Akhrik Tsveiba a representar a Comunidade dos Estados Independentes na fase final do Euro-1992, na Suécia.
O duelo ia ser praticamente inédito. Se o Dínamo Kiev pertencia à elite soviética, o Tavriya só por uma vez havia conseguido jogar no primeiro escalão. Em 1980/81, a equipa da Crimeia até empatou em casa mas saiu derrotada de Kiev por 1-3. No final da época, o Dínamo foi campeão enquanto o Tavriya regressou ao segundo escalão.
Naquele momento, com 36 mil espetadores nas bancadas, a história do passado era pouco importante. Só importava escrever história no presente. Aí, apesar do domínio do Dínamo, impulsionado por um público claramente a seu favor, o Tavriya levou a melhor.
Com uma atitude contida, apostando em ataques rápidos, lances de bola parada e remates de longe, o Tavriya marcou o único golo do jogo aos 75 minutos. Depois de um canto da direita, Shevchenko cabeceou junto à pequena área e bateu o guarda-redes adversário.
«Sabia que iria marcar. Era a nossa jogada. Já marquei tantos assim», disse na altura Shevchenko. Um Shevchenko, perceba-se. Não Andrey, o mais famoso e figura posterior do Dínamo, mas Serhiy, um experiente jogador da equipa de Anatoliy Zayayev, autor de oito golos durante o campeonato, muitos deles decisivos.
Se o Dínamo Kiev tinha jogadores como Oleg Salenko e Oleg Luzhny, o Tavriya era praticamente composto por jogadores desconhecidos. Só dois chegaram a internacionais: Olekasandr Holovko, na altura com vinte anos, viria a fazer 58 jogos pela seleção, enquanto Serhiy Yesin foi duas vezes internacional em 1996. Mas Yesin não foi oficialmente campeão. Apesar de ter jogado a final, foi o único jogo que disputou em toda a época. Tinha apenas 17 anos e beneficiou da longa lista de ausências.
Um treinador marcado pela tragédia
O arquiteto do título chamava-se Anatoliy Zayayev. Nascido em 1931, era um homem da casa, natural de Simferopol. Já tinha visto muito na sua vida. O pai fora assassinado em 1938 em vésperas da II Guerra Mundial, o irmão mais novo morrera durante a ocupação germânica da Crimeia e o mais velho morrera a março de 1945, na Alemanha, mesmo no final do conflito.
Zayayev foi obrigado a crescer mais rápido, a fazer o que tinha de ser feito para ganhar a vida. No futebol, tinha uma filosofia única. Era obcecado pelo controlo, impedindo que os jogadores dormissem durante o dia ou bebessem água durante os treinos. Mas o espírito que lhes passava era especial.
Com 60 anos, entrou na história do clube. Foi o timoneiro do grupo que conquistou o primeiro título na história moderna da Ucrânia e ofereceu essa distinção ao presidente do clube… o seu filho. Também aí, o final foi trágico. Apenas três anos depois, o filho foi assassinado, provocando uma das maiores mágoas na vida de Anatoliy, que sempre disse saber quem tinham sido os culpados e chegou a escrever ao presidente ucraniano, em 2011, para fazer algo em relação ao assunto.
Morreu um ano depois, sem chegar a ver justiça, num acidente de viação numa via rápida da Ucrânia. Tinha 81 anos.
O que veio depois do título?
A primeira edição da Liga dos Campeões ficou marcada pela primeira participação de uma equipa representante do campeonato ucraniano. Shevchenko voltou a ser uma figura indissociável da história do clube, ao marcar o primeiro golo nas competições europeias, durante o confronto com os irlandeses do Shelbourne.
Na ronda seguinte, com o Sion de Túlio Maravilha, Assis e Ouattara, os argumentos foram insuficientes. Ainda assim, Shevchenko voltou a fazer das suas com mais dois golos: um em cada jogo, ambos de penálti.
Os anos que se seguiram foram marcados pela queda no esquecimento. Dínamo Kiev e Shakhtar Donetsk venceram todos os títulos desde então e só mesmo em 2010, na Taça da Ucrânia, o clube voltou a festejar um troféu.
Foi o último grande momento. A anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 levou a equipa a abandonar a liga ucraniana, reaparecendo, impulsionada por alguns jogadores, nos escalões secundários da federação russa. No ano passado, o Tavriya foi refundado na Ucrânia, numa cidade próxima da Crimeia, mas, mais uma vez, surge ignorada nas divisões secundárias.
Um dia foi grande. Um dia foi especial. Agora nem todos se lembram dele mas o palmarés nunca será anexado: é a história do primeiro campeão ucraniano da era moderna.
RPS