Setúbal. O Bonfim para acabar o campeonato
«Quem o viu jogar não esquece, quem não viu não sabe o que perdeu!». A rotunda que dá para o Estádio do Bonfim não dá tréguas. A inscrição que acompanha a estátua de Jacinto João – o primeiro grande JJ do futebol português – apresenta desde logo o Vitória a quem vem de fora.
Eu não sei o que perdi. Por muito que se ouça falar de jogadores do passado, é diferente vivê-lo por dentro. Jacinto João foi uma bandeira do Vitória, uma referência máxima, um motivo de orgulho semanal que levava uma região de pescadores e operadores fabris a esquecerem a dureza do quotidiano e a partirem num sonho desenhado em quatro linhas.
Jacinto João foi especial. Mas eu nunca o vi. Cheguei tarde. Quando apanhei finalmente a carruagem do futebol português, o ídolo sadino era estrangeiro, vinha da Nigéria e respondia pelo nome de Yekini. Ainda hoje, 25 anos depois daquela brilhante temporada de 1993/94, que culminou com um desempenho brilhante no Mundial dos Estados Unidos, é difícil esconder a emoção ao recordar um jogador que nos seduzia só pela fonética do seu nome.
O «meu» Vitória não tem Jacinto João mas terá sempre Rashidi Yekini. Como tem a loja do clube, logo à entrada. É impossível não repararmos naquele sorriso tosco que o acompanhava depois de cada golo, a cada festejo partilhado com bancadas muito mais vestidas do que os últimos anos tiveram.
O futebol na altura era mais nu. E o Bonfim era um viveiro de jogos memoráveis. Do 5-2 ao Benfica que, confessou Toni, foi essencial para o título, do 2-3 com o Sporting e do magistral golo de Balakov ou do 3-3 com o FC Porto, num jogo em que os setubalenses conseguiram recuperar de um 0-3. Tudo na mesma temporada.
Uma oportunidade perfeita
Ir a Setúbal ver um jogo do Vitória era algo que estava nos planos há muito tempo. Mas só agora, em maio, na última jornada do campeonato, as circunstâncias o permitiram. Aproveitei as vantagens de uma ida e volta «gratuita» - à conta do passe de transportes públicos a 40 euros – e saí de Oeiras ainda de manhã.
O trajeto pode ser longo – durou um pouco mais de duas horas, depois de uma viagem de autocarro, uma de comboio, uma de metro e uma segunda de comboio -, mas um dia não são dias. A jornada estava planeada ao pormenor e nem a possibilidade de comer choco frito – o Papa desta Roma – foi descartada. O estádio fica bastante perto da estação e do Bonfim até à Avenida Luísa Todi é um pequeno pulo.
Quando a hora do jogo chegou, já tínhamos os bilhetes confortavelmente na mão (dez euros cada), tínhamos estado na loja do clube e almoçado com tempo. Só faltava mesmo o jogo… que seria especial.
A novidade tinha sido dada na véspera pelo treinador. Nuno Pinto, depois de recuperar de um linfoma, ia jogar os primeiros minutos. Ovacionado logo na altura em que as equipas foram anunciadas, o lateral esquerdo viria a protagonizar os dois momentos mais significativos do encontro.
Primeiro, ao ser substituído. Aplaudido de pé por todo o estádio, inclusive pelos cerca de 50 adeptos do Rio Ave que fizeram a viagem desde Vila do Conde, foi saudado por colegas de equipa, adversários e árbitro, numa demorada caminhada, e carregada de lágrimas, até à saída de campo.
Bonfim de pé para a substituição de Nuno Pinto pic.twitter.com/5RnsL08mo3
— É Desporto (@eDesporto) May 18, 2019
Depois, ao minuto 21, o mesmo da sua camisola. A bola foi posta fora e durante cerca de um minuto o Bonfim voltou a levantar-se para aplaudir e homenagear a vida de uma pessoa. Ali, naquele momento, Nuno Pinto não foi um sadino. Não foi um jogador de futebol. Foi um homem que se viu perseguido por um drama e conseguiu dar a volta por cima.
Jogo interrompido ao minuto 21 para homenagem a Nuno Pinto pic.twitter.com/MlOhTC9J1z
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O palco aos mais novos
O bilhete a dez euros garantiu um lugar no topo sul, num setor da bancada em que havia praticamente apenas adeptos do Rio Ave. Muitos homens, muitas mulheres e algumas crianças. Uma delas, um rapaz ainda não adolescente mas que parecia ter já superado vários rituais de iniciação ao futebol, marcava os ritmos ao tambor. Outros exibiam enormes bandeiras com o símbolo do Rio Ave ou com referência aos Ultras Verdes.
As experiências passadas também eram recordadas. «No ano passado apanhámos aqui um calor do caralho!», soltou uma mulher enquanto subia as escadas. De facto, apesar de ser maio, a tarde foi alternando algumas abertas de sol com uma brisa não necessariamente agradável.
Apesar de em menor número, também havia adeptos do Vitória entre nós. Em destaque, o pai que se sentava com o filho algumas filas à nossa frente. Equipados a rigor, com um cachecol centenário, tinham posturas diferentes.
Ele, o pai, sempre de olhos no relvado, motivando o filho a olhar com mais atenção sempre que a bola se aproximava. O mais novo nem sempre correspondia. De tímidos cânticos por Vitória e pequenas mensagens de que «o Rio Ave vai para o lixo!», quando olhava para a claque do lado direito, passou mais tempo com os olhos no telemóvel do pai.
Talvez porque a construção do Bonfim não é a mais cativante, sobretudo quando não há gente suficiente para tornar o ambiente num topo imperdível. A distância para as quatro linhas é grande o suficiente para se perder a capacidade de se ficar submerso no ambiente do jogo.
Golos reservados para a segunda parte
O vento forte deu a primeira parte ao Vitória mas os momentos em torno de Nuno Pinto foram os únicos verdadeiramente memoráveis do primeiro tempo. No segundo, contudo, começaram a surgir os golos… e de forma supersónica.
Num ápice, Bruno Moreira marcou para o Rio Ave, Vasco Fernandes para o Vitória e o jogo ganhou interesse. Minuto após minuto, porém, o empate começou a desenhar-se na mente de cada adepto. O jogo já só servia para cumprir calendário, sobretudo depois de os sadinos terem assegurado a permanência em Chaves, na jornada anterior, e a pressão era escassa.
O facto de ser o último jogo da época, e de o encontro anterior do Vitória em casa, com o Boavista, ter sido, à falta de melhor palavra, atribulado, fez com que a polícia trouxesse reforços para garantir que nada de inesperado acontecia após o apito final. Brindados com assobios, o posicionamento dos polícias de intervenção foi o aperitivo para o Rio Ave matar o jogo nos descontos.
Já depois de surgir a placa com três minutos de compensação, Bruno Moreira bisou e, no último fôlego, Ahmed Said fechou a contagem. O Rio Ave ia voltar para Vila do Conde com três pontos e, apesar da derrota, o Vitória festejou mais uma permanência garantida depois de muito sofrimento.
De volta a casa, como sempre, as conversas de rua ainda giravam em torno do jogo, sobretudo os minutos finais. «Aquele [o guarda-redes Cristiano] em vez de defender por cima da barra, defendeu para a frente», desabafava um homem de idade avançada sobre o lance do 2-1. «Bastava atirar por cima da barra, mas nem isso fez!», continuou, enquanto o amigo respondia dizendo que nem sequer se tinha apercebido do 3-1.
Foi o último sinal que tivemos do Vitória-Rio Ave, numa tarde que ia ser dominada pelo Benfica-Santa Clara e FC Porto-Sporting. Ou assim pensei. Duas horas depois, a sair do comboio na estação de Oeiras, a poucos metros de mim, dou de frente com um rapaz com um casaco do Vitória. Será possível que tenha feito o mesmo caminho que nós? O futebol tem coisas destas.