Ronaldo e a qualidade da Europa
«Na minha maneira de ver o futebol, acho que a Europa perdeu muita qualidade». As declarações de Cristiano Ronaldo em Portugal, numa semana em que o Al Nassr sofreu nove golos de Celta e Benfica em 180 minutos, têm sido ridicularizadas.
A opinião está longe de ser inatacável embora haja nuances que pareçam comprovar o que diz. Desde que Ronaldo saiu para a Arábia Saudita tem havido, de facto, um êxodo relevante. Vejamos a tendência dos últimos vencedores da Bola de Ouro, um prémio que durante muito tempo só podia ser atribuído a jogadores a atuar na Europa.
Ronaldo e Benzema saíram para a Arábia Saudita, Messi para os Estados Unidos. A sangria de qualidade existe. Das últimas 14 edições, apenas uma foi ganha por um jogador que ainda está no futebol europeu (Luka Modric). Se quisermos ir mais longe, há apenas quatro jogadores no ativo com uma Bola de Ouro na carreira: um joga na Europa, outro na América e dois na Ásia.
A estatística é inatacável mas não foi isso que Ronaldo quis dizer. Longe disso. Ronaldo quis convencer-nos de que é um Fernão de Magalhães dos tempos modernos, um Pedro Álvares Cabral que descobriu o Brasil como se a América do Sul estivesse a jogar às escondidas.
Ronaldo já não consegue – e talvez nunca tenha conseguido – ter o distanciamento necessário para conseguir analisar com critério as tendências do futebol. Ou, pior que isso, vive numa realidade paralela, alimentada por todos aqueles que nunca ousaram contrariar o seu ego e, como tal, nunca se tornaram incómodos.
O futebol europeu está destinado a ser o farol da modalidade. Talvez não para sempre, mas há tendências que demorarão muito a inverter: a tradição futebolística, a modalidade como desporto-rei, a rivalidade num continente em que as fronteiras estão cada vez mais esbatidas mas onde campeonatos como o inglês, o espanhol, o italiano e o alemão continuam a ser verdadeiras sanguessugas do talento mundial.
Por muito que Estados Unidos, China, Arábia Saudita, Qatar, Japão ou a própria Rússia (um fenómeno muito específico dentro do futebol europeu) tenham tido investidas ao longo das décadas para acumular talento e desenvolver o seu próprio futebol, apenas a Major League Soccer consegue ser vista como uma verdadeira ameaça. Os Estados Unidos são um país capaz de atrair por mais do que apenas pelo dinheiro, embora esse continue a ser o maior combustível.
A Europa não é apenas a Europa. É o continente do Real Madrid, do Barcelona, do Bayern Munique, do Manchester United, do Milan, do Inter, de um sem número de equipas históricas que continuaram a crescer com o desenvolvimento dos maiores talentos de cada um dos continentes. Só a América do Sul consegue aproximar-se desta dimensão mas, por circunstâncias económicas e sociais, nunca se conseguiu posicionar como verdadeira ameaça à hegemonia europeia.
Basta olhar para as estatísticas do Mundial disputado no Qatar. Inglaterra, Espanha, Alemanha, Itália e França eram os cinco campeonatos (escalão máximo e não só) mais representados e totalizavam praticamente 55% dos jogadores convocados. Ao juntar as restantes ligas nacionais do continente, a percentagem subia para 73,28. Por outras palavras, e aproximadamente, em cada quatro jogadores presentes no Mundial, apenas um não jogava na Europa.
Podia não ser mas, neste caso, quantidade equivale a qualidade. A Europa é capaz de reter os seus maiores talentos – apesar do êxodo recente – como nenhum outro continente. Os melhores jogadores da América do Sul têm o sonho de jogar na Europa. O mesmo se passa com os africanos. E com os asiáticos. E com o resto do mundo.
Ronaldo, Messi e Benzema abandonaram o futebol europeu mas têm 38, 36 e 35 anos. Têm todo o direito a escolher os passos da sua carreira sem serem criticados por isso. Mas não são pioneiros nem estão a desbravar florestas nunca antes pisadas, nem mares nunca antes navegados. Eusébio tinha 33 anos, Cruijff 32 e Beckenbauer 31 quando foram jogar para os Estados Unidos. Juntos, venceram seis Bolas de Ouro.
Os maiores talentos, os melhores talentos, os talentos mais jovens vão continuar a olhar para o futebol europeu como o sonho da carreira. Arábia Saudita, Qatar, Estados Unidos e epifenómenos semelhantes vão conseguir seduzir esporadicamente um ou outro jogador ainda na flor da idade, mas a esmagadora tendência não será essa.
O que Cristiano Ronaldo fez, isso sim, foi de alguma forma validar um campeonato. O português tem estado a funcionar como um ímane para outros talentos que, mais não sejam, são convidados a pensar “se Ronaldo foi para lá, por que não irei eu?”.
Mas não foi isto que Ronaldo disse. A oratória do melhor jogador português da história nunca foi a sua maior capacidade. Pelo contrário. A sua carreira é feita de monossílabos que fazem escola mas, para declarações mais sustentadas, talvez seja melhor, como ele próprio sugeriu, perguntar ao Carlos.
O futebol europeu vai sobreviver mesmo que não esteja bem nem se recomende. Há muita destruição a ser feita por dentro, dinheiro a entrar de maneira duvidosa, multimilionários a deixaram-se consumir por uma ganância crescente e sonhos para dinâmicas que matem de vez os pequenos e tornem o futebol europeu uma estrutura de meninos ricos que levavam a bola debaixo do braço para a escola e decidiam quem podia jogar. Já nessa altura, porém, talvez esse fosse o único talento que tinham
O futebol está a transformar-se à velocidade-luz mas não é porque Ronaldo foi para a Arábia Saudita. A ida para o Al Nassr a troco de muitos milhões é muito mais uma consequência do que uma causa desta transformação.
As carreiras de Eusébio, Beckenbauer, Cruijff e mesmo Zico, que se aventurou no futebol japonês, não ficaram manchadas por estas aventuras exóticas. A de Ronaldo poderá ficar. Porque insiste em ser quem não é. Porque mantém o desejo de alimentar bicefalias que marcaram a última década, porque continua sem aprender a gerir os silêncios e a comunicação.
Cristiano Ronaldo é o melhor jogador português da história. É um dos melhores de sempre do mundo. Mas corre o risco de sair por uma porta demasiado pequena para a dimensão do seu talento. Não tem arte nem engenho na comunicação e a sua melhor poesia é a mesma que Romário apregoava de Pelé.