Precisamos de mais heróis com pés de barro
Esta era para ser uma história de futebol mas rapidamente se pode tornar sobre ténis. Era para ser uma história sobre Inglaterra mas foi sequestrada por Andy Murray, o escocês que durante anos só foi sendo britânico por conveniência.
A exibição de Murray em Wimbledon contra o alemão Oscar Otte, numa maratona de segunda ronda decidida no quinto set, conquistou qualquer coração que não se defina por insensível. Não é tanto uma história de redenção, como tantas outras no passado, mas sim de paixão. De vencer a dor, a mágoa, a desilusão, o próprio tempo para prolongar o prazer de se fazer algo mesmo quando se percebe que vencer – vencer mesmo – já não está ao alcance.
Quando Andy Murray venceu ontem, a humanidade sorriu. Tal como na véspera tinha sorrido quando os ingleses venceram a Alemanha em Wembley. Não por ser a Inglaterra. Não por ser a Alemanha. Mas pelo abstrato de ser uma história de libertação de um trauma. De dar uma lição valiosa de que é possível, mesmo quando todos dizem o oposto e os sinais de um passado próximo – e até um pouco mais distante – apontam para o contrário.
A Inglaterra, uma seleção de falhas, conseguiu vencer a Alemanha, a seleção que tem fama – e cada vez menos proveito – de infalível. Andy Murray, o tenista com um corpo esmagado pelo esforço, conseguiu voltar ao palco mais alto do ténis britânico e dar pelo menos mais uma tarde/noite inesquecível a todos os fãs.
O impacto do desporto é este. A proximidade, os pontos de contacto, que o adepto comum, o ser humano com pouco de extraordinário, consegue estabelecer com um atleta de elite. E se figuras como Michael Jordan, Messi e tantas outras podem parecer inspiradoras para exigir nunca menos do que a perfeição, é na imperfeição que surgem as boas histórias.
Os heróis com pés de barro humanizam o desporto. Fazem-nos sentir iguais às figuras que vemos na televisão. Não precisamos de autómatos, de homens e mulheres disfarçados de máquinas perfeitas que nos levam para uma sobrenaturalidade ou algo de outro planeta. Existem, claro, e deixam marca, mas é dos outros que precisamos.
O desporto é feito de empatia. Faz-nos apaixonar por um clube, torcer pelas vitórias de uma figura, sofrer com as derrotas e chorar com as desilusões. É uma metáfora da vida, uma extensão para o quotidiano onde os dias não são, nem podem ser, todos perfeitos.
Roger Federer pareceu um autómato até janeiro de 2009. Depois chorou ao perder com Nadal na final do Open da Austrália. Ali, naquele momento, tocou milhões de adeptos que até então poderiam não gostar dele. Humanizou-se e, com isso, chegou a mais gente.
Não queremos heróis com falhas criminosas. Não queremos grandes talentos, autênticas estrelas que atropelem gente na rua, violem ou agridam mulheres, se dopem ou sejam agressivos com adeptos. Não é desse material que este barro se faz. É do material da falibilidade.
Precisamos de heróis que não sejam super-heróis. Precisamos de estrelas que se apaguem, de figuras que podem falhar nos grandes momentos para, juntamente com eles, descermos ao inferno e acompanharmos a jornada de regresso ao topo. Precisamos de sentir que aquele herói é como nós. Precisamos de saber que a angústia é partilhada, que nem todos os dias podem ser bons, que a infalibilidade é um desejo, talvez até uma obsessão, mas será para sempre utópica.
No fundo, precisamos de proximidade. Por muito tentador que seja poder idolatrar alguém que ganhe sempre, que tenha tudo na vida, que seja impoluto e irradie felicidade, é irrealista achar que de facto há gente assim.
As pessoas não são assim. Os atletas, com maior ou menor sucesso, também não o são. E é por isso que cada vez mais temos figuras como André Gomes e Kevin Love a abrir o livro sobre depressões. É por isso que temos Naomi Osaka, uma das maiores figuras do ténis feminino atual, a humanizar-se e a alertar para a necessidade de proteger a sua saúde mental.
É ótimo ver Naomi Osaka a jogar dentro de campo mas foi a sua confissão de não estar num momento bom que terá tocado mais gente por todo o mundo por estabelecer um denominador comum. Não precisamos de atletas sem-vergonha a dizer ao mundo que merecem ser donos disto tudo, precisamos de atletas sem vergonha de dizer ao mundo que têm falhas. Que são pessoas. Que precisam de ajuda.
Precisamos de mais heróis com pés de barro. Porque a perfeição até no cinema aborrece.