Portugal. Uma vitória épica em tempos de Barbie
Portugal deu mais um passo de gigante na sua evolução da equipa feminina de futebol. A vitória na Nova Zelândia sobre o Vietname representou o primeiro triunfo na história dos Mundiais femininos e o feito, mais valorizado por uns do que por outros, teve o condão de abrir janelas temporais para o passado.
Estávamos em 1966, em plena ditadura, quando José Augusto vestiu o papel que viria a ser de Telma Encarnação e marcou o primeiro golo de Portugal no Mundial de Inglaterra. Foi em Manchester, em Old Trafford, a 13 de julho e foram precisos apenas dois minutos.
Esperava-se que o feito pudesse ser celebrado de forma transversal mas o Diário de Lisboa, por exemplo, tinha apenas uma breve referência ao triunfo na primeira página, apenas para utilizar a euforia como lançamento para o principal tema: o aumento dos funcionários públicos a partir de setembro. De resto, havia espaço para o ensino de enfermeiras, a vaga de calor em Nova Iorque, a taxa de desconto do banco de Inglaterra, a visita do primeiro-ministro britânico a Moscovo em plena guerra fria e… o terceiro casamento de Brigitte Bardot.
Não sei se terá sido falta de visão, se apenas consequência de não ser um jornal desportivo, mas o impacto daquela estreia continua a ter repercussões ainda hoje, mesmo que no corpo do jornal se leia que «o que interessa é ganhar mas nada de alimentar ilusões».
Foi precisamente a alimentar ilusões que chegámos aqui, mais de 57 anos depois. A ilusão alimentou as crianças, as raparigas, as mulheres e hoje, 28 de julho, estamos a viver a ressaca de um dia histórico. E hoje já não há desculpas: qualquer português e qualquer órgão de comunicação social sabe que esta vitória terá repercussões.
O papel da mulher no futebol está cada vez mais sólido e a aposta é maior não só a nível global mas também em Portugal. Seria preciso ser completamente desfasado da realidade para achar que o país não teria um potencial enorme naquele que é o desporto-rei assim que as oportunidades começassem a surgir.
A vitória com o Vietname é o maior sinal de desprendimento, independência e triunfo sobre o preconceito. E mesmo que haja quem ache ser mais importante dar destaque a capitães prontos para uma Supertaça ou a renovações contratuais, ninguém põe sequer em causa que este foi o maior e mais importante momento do dia desportivo.
Para as futuras gerações, poderemos dizer que surge num período de guerra na Ucrânia, de uma onda de calor preocupante, em vésperas das Jornadas Mundiais da Juventude e em tempos de extremos no cinema: Oppenheimer e Barbie.
Se o primeiro, mais violento e opulento, pode apontar para o futebol dos homens, também ele mais violento, explosivo e animal, o segundo aponta para o futebol das mulheres, mas não por ser uma boneca.
Vencer pela primeira vez num Mundial quando o filme Barbie está nos cinemas é a metáfora perfeita. Durante décadas, as raparigas foram encostadas a um canto para brincar com bonecas. As meninas vestiam de rosa, os meninos de azul-bebé. As meninas brincavam com Barbies, os meninos com bolas de futebol.
E ai de quem ousasse quebrar o estereótipo. Um menino que gostasse de brincar com bonecas era gozado pelos pares, uma menina que quisesse jogar futebol era uma maria-rapaz. Hoje, essas conceções ainda existem mas estão cada vez mais esbatidas.
Hoje, podemos ver com orgulho um grupo de 23 atletas festejar uma vitória épica horas antes de ver uma sala de cinema bem preenchida por homens. Por mais que haja quem queira resistir, a sociedade está a evoluir e não há volta a dar.
As amarras do passado cheiravam a mofo e foram enfraquecendo perante a força de quem se foi batendo pela liberdade de fazer o que quer. Porque é possível ir treinar a um clube ao final da tarde e brincar com uma Barbie à noite. É possível pintar as unhas antes e marcar um golo ao Vietname depois.
O lugar das mulheres é tanto na cozinha como o dos homens é no futebol. Não há lugares marcados. Quando alguém nasce, nasce para fazer o que lhe vier a apetecer sem estar condicionado pelo que quem estava antes decidiu ser aceitável.
A vitória de Portugal com o Vietname é uma lição e deve ser transmitido com orgulho a quem vier a seguir. Os futuros avós, pais, tios, irmãos mais velhos deverão contar com orgulho que viram este momento histórico.
Chegar a um Mundial pela primeira vez, ganhar um jogo pela primeira vez, é apenas mais um sinal de que não há limites para o sonho. E este exemplo deve ser dado não apenas a meninas como a meninos. Os rapazes também devem saber, e deve-lhes ser ensinado desde cedo, a importância de acreditar e reivindicar algo.
Sim, as mulheres podem jogar futebol e ter sucesso nisso. Sim, qualquer pessoa, independentemente da origem, género ou aspeto, deve ter o direito a fazer o que sonha, o que sente que nasceu para fazer, o que gosta.
Talvez isto não seja o mais importante do que se passou ontem. Não sei o que será.