Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

É Desporto

É Desporto

24 de Julho, 2023

Pogacar e a euforia do festejo

Rui Pedro Silva

Tadej Pogacar

Tadej Pogacar falhou a vitória no Tour pelo segundo ano consecutivo. Tadej Pogacar teve mais olhos do que barriga na planificação da temporada, quis ganhar tudo, mas chegou às montanhas de França e foi controlado por Jonas Vingegaard até cair com estrondo em dias consecutivos. Tadej Pogacar é um fracasso difícil de contornar. Tadej Pogacar é tudo e mais um par de botas.

É possível escrever todas as frases anteriores com um ar sério, sem nos rirmos, mas isso não quer dizer que façam sentido e que sejam, também elas, sérias. Na era do imediatismo, a memória do adepto está cada vez mais curta e sente-se uma tentação vertiginosa de rotular tudo nos extremos: um grande golo é vencedor do Prémio Puskas em janeiro, uma derrota inesperada é uma humilhação tremenda, uma vitória confortável é um arraso.

Não é só na política que os extremos estão a ganhar vida. Aliás, a política limitou-se a copiar as tendências do discurso que se têm vindo a sentir um pouco por todo o lado, com especial incidência no desporto, uma maravilha do nosso mundo que tem o condão de agradar a gregos e troianos, japoneses e coreanos, homens e mulheres, russos e ucranianos, crianças e veteranos.

Tadej Pogacar tem sido vítima desta necessidade de rotular tudo instantaneamente. Não há meio-termo, não há vitórias parciais, não há enormes exibições. Há apenas sucessos, gigantescos sucessos, e fracassos, enormes fracassos. Quando o esloveno vacilou perante Vingegaard há uma semana, o Tour mais equilibrado do século transformou-se rapidamente numa derrota pesada para Pogacar. De repente, aquele que continuava a ser, por larga vantagem, o segundo classificado da prova por etapas mais importante do mundo, atual vice-campeão e com dois títulos nas três edições anteriores, tornou-se um falhado.

Subitamente, os primeiros meses do ano desapareceram. O homem que venceu o Paris-Nice, à Volta à Andaluzia, que foi quarto na Milão-Sanremo e que venceu em pouco mais de duas semanas a Volta a Flandres, a Amstel Gold Race e a La Flèche Wallonne antes de desistir por queda na Liège-Bastogne-Liège e falhar a hipótese de aumentar ainda mais o caráter histórico da sua temporada, tornara-se banal. Dera-nos meses de emoções fantásticas, estupefactos com o que continuava a alcançar, mas no julgamento em França, os atenuantes eram inexistentes.

Tadej Pogacar podia ter falhado o Tour que a sua época já teria sido fantástica, longe do alcance dos comuns e dos invulgares mortais. Mas, como habituou o público a ser um extraterrestre, foi vítima do seu próprio sucesso. Sem ter feito nada de errado.

Que não haja dúvidas: ninguém se sentiu pior ou mais desiludido pelo tempo perdido no contrarrelógio ou na etapa de Courchevel do que o próprio Pogacar. Mas o esloveno acabou por ser o único a reagir com inteligência. As redes sociais agiram com um apetite voraz pelas afirmações contundentes e levaram Pogacar de arrasto.

O esloveno é profissional e até pode ser de outro planeta, mas não é de ferro. À frustração pessoal, juntou a que lhe foi imposta. Como se tivesse feito algo de errado. Por isso, quando cruzou a meta na chegada a Le Markstein, os festejos não foram exagerados. E muito menos foram motivo de um pedido de desculpa, ou um breve comentário, nas redes sociais por ter sido demasiado eufórico.

Aquele momento, ao cruzar a meta no primeiro lugar, significou mais para Pogacar do que qualquer pessoa pode imaginar. A vitória foi um bolo com múltiplos ingredientes desde raiva, vitória moral, cansaço acumulado, stresse, alegria e sentimento de injustiça.

Por outras palavras, Tadej Pogacar festejou como sentiu que tinha de festejar. E deu asas ao que tinha lá dentro. Numa sociedade em que parecemos reprimir cada vez mais as emoções por culpa de uma brigada de conduta à espreita que assinala os patamares aceitáveis para cada fasquia, Pogacar quis ser diferente. E ainda bem. Não se sujeitou, nem pensou na polícia dos costumes ignorante que se incomoda com o que os outros sentem como se tivesse direito a julgar, a reprimir ou a condenar.

Aconteceu com Pogacar no Tour como acontece frequentemente com uma vitória no futebol ou com celebrações no desporto após golos, lançamentos, pontos, o que quer que seja. Cada um festeja como sente que deve festejar. Se é uma vitória sobre o rival, que seja. Se é uma vitória que vale a permanência três jornadas, que seja. Até pode ser um golo numa derrota que tenha um significado especial.

Porque a verdade é esta: por mais que nos habituemos a ver estas figuras na televisão, nos estádios, nos pavilhões, nas estradas ou nas ruas, nunca sabemos o que lhes vai na alma. Há quem até mereça festejar desta forma só por se conseguir levantar de manhã com energia para viver mais um dia. A vida é feita de pequenos momentos, pequenas vitórias, pequenos festejos e, por vezes, há uns que nos parecem maiores que a própria vida.

Tadej Pogacar festejou. Que o deixem festejar. Eu fiquei genuinamente feliz por ele. Ali, naquele cruzar de meta, vi soltar a frustração de uma semana em que foi criticado injustamente. Vi um homem, humano como eu, a reagir à desilusão. Vi alguém conquistar a empatia de tantos por ter reunido a energia para se levantar depois de cair.

Pode haver muita coisa errada, mas o festejo de Pogacar não será uma delas. Nem qualquer outro festejo. O mundo precisa de mais alegria.

3 comentários

Comentar post