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É Desporto

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22 de Outubro, 2022

Os Jogos Olímpicos e o meu pai

Rui Pedro Silva

Derek Redmond com o pai em 1992

Edoardo Mangiarotti é uma das figuras mais importantes na história da esgrima. Conquistou treze medalhas olímpicas espalhadas por 24 anos, entre os Jogos de 1936, em Berlim, e os de 1960, em Roma. Mas provavelmente nunca teria sido nada sem o seu pai. Giuseppe foi campeão italiano 17 vezes e percebeu que poderia fazer do filho uma máquina de vitórias se o obrigasse a manejar a espada com a mão esquerda apenas pela vantagem teórica que conseguiria alcançar durante um combate.

Santiago Lange foi o velejador mais velho a participar nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2014, mas não foi por isso que fez história. O argentino tinha 54 anos, acabara de recuperar um cancro do pulmão e conseguiu conquistar uma medalha de ouro inédita, 62 anos depois de o pai ter competido nos Jogos Olímpicos de Helsínquia. O fator extra? Santiago também tinha dois filhos a competir na vela no Brasil. Ficou tudo em família.

Derek Redmond era um velocista britânico com aspirações ambiciosas nos 400 metros nos Jogos Olímpicos de Barcelona. O sonho caiu por terra à entrada dos 200 metros finais mas, movido a orgulho, fez questão de terminar a distância perante dores lancinantes. O pai Jim estava na bancada a vê-lo, e como qualquer pai que se orgulha de o ser, fez o possível e o impossível para confortar o filho. Invadiu a pista mesmo perante a oposição dos seguranças e serviu de amparo nos metros finais quando dos olhos de Derek já só saíam lágrimas. Foi desqualificado mas o amor do pai fez toda a diferença. Foi o ombro necessário no momento mais triste e amargo da carreira.

Eu nunca fui atleta olímpico. Nunca estive perto de o ser. Nunca tive aspirações a sê-lo. Mas tive um pai que me ajudou em todos os momentos precisos. Perdeu madrugadas de sono para me levar aos jogos aos fins-de-semana de manhã, foi obrigado a jantar a horas impróprias para me poder ir buscar aos treinos e, já na vida adulta, continuou a fazer tudo o que estava ao seu alcance.

O meu pai

Por interesse, por amor, por gostar de estar comigo, por gostar de partilhar coisas comigo. Sempre que eu fazia uma viagem, dizia-me que ficava na «retaguarda» para o caso de ser preciso resolver alguma coisa. Quando me telefonava, começava quase sempre com um «então, campeão?» antes de soltar as suas mais mirabolantes histórias, contar-me os seus problemas de saúde, a quantidade de medicamentos que tomava, perguntar-me se havia bola na televisão naquele dia e qual era o meu palpite para o resultado.

O meu pai nunca escondeu o orgulho que tinha em mim. Ainda hoje, na cadeira ao lado da sua cama tem mais de um metro de altura em páginas assinadas por mim quando escrevia para jornais. Quando comecei o É Desporto, fez questão de arranjar uma forma de ler (as tecnologias não eram o seu forte) e frequentemente dizia-me que tinha conhecido alguém a quem tinha recomendado o site.

Uma vez, quando ainda trabalhava num jornal, ofereceu-se para ir comigo na reportagem mais cansativa que fiz: vimos, sempre ao vivo, um Portimonense-Benfica numa sexta-feira à noite, um Famalicão-Sporting num sábado à noite e um Alcochetense-U. Leiria no domingo à tarde. Mais de 1000 quilómetros, a juntar a outros tantos milhares, que percorreu para garantir que não me faltava nada. E hoje, olhando para trás, percebo isso mesmo, nada do que verdadeiramente era importante alguma vez me faltou.

Portimonense-Benfica

Famalicão-Sporting em 2011

Apesar de tudo isto não tínhamos a relação mais próxima. Era capaz de estar semanas sem falar com ele e, com a pandemia, e muito por culpa de ele ser um doente de risco, devo tê-lo visto uma vez em ano e meio. Assim que começou a vacinação, estivemos mais vezes do que tínhamos estado em muito tempo, sempre com a desculpa de ver futebol na televisão. Consigo lembrar-me de todas as vezes (ou de todos os jogos) sem dificuldade. A final da Taça entre o FC Porto e o Benfica, a final da Liga dos Campeões entre Chelsea e Manchester City e o Bélgica-Itália, que calhou no aniversário dele e que serviu para jantarmos apenas os dois.

Tinha feito 72 anos. Não lhe dei nenhuma prenda. Não tinha jeito para prendas, nem sequer tenho muito jeito para falar. Mas escrever era o meu forte. Dois anos antes, tinha-lhe dado a prenda mais importante de toda a minha vida. Tinha-lhe escrito uma carta a agradecer. A lembrar tudo o que tinha feito por mim, todos os sacrifícios, todas as boleias, todo o apoio, toda a confiança, todo o orgulho. Fosse na escola, no futebol, no trabalho ou na ajuda quando decidi comprar uma casa. Não estávamos sempre juntos. Mas estava lá sempre que precisei. E dizia-lhe que muito do que me tornei, foi por causa dele.

O meu pai

A carta devia ter sido só para ele. Pedi-lhe para que lesse apenas quando chegasse a casa. Quando me ligou, disse que ia ter de mostrar a mais gente. Percebi com o tempo que tirou cópias, que emoldurou e pendurou em casa. Que aquelas palavras de uma folha, não mais do que isso, lhe tinham tirado toneladas de cima dos ombros. Contaram-me que aquele texto lhe tinha feito perceber que não tinha falhado enquanto pai. Olhando para trás, só me arrependo de não o ter feito mais cedo, de não garantir que ele soubesse muito tempo antes. Que não passasse tanto tempo solitário a sentir que a vida tinha passado por ele. A última pergunta que me fez, antes de ficar doente, trouxe a desilusão agarrada: «Já percebi que não vou ser avô, não é?».

Expliquei-lhe que não. Que não fazia parte dos planos. Estava longe de imaginar que mesmo que tivesse engravidado alguém naquela noite, esse momento nunca chegaria. No final desse mês, começaram as semanas mais difíceis na minha vida. Ficou doente, chamou a ambulância para ir para o hospital e ligou-me a avisar, mas deram-lhe alta horas depois sem ter feito qualquer teste à covid-19. Na manhã seguinte, quando lhe liguei, já estava irreconhecível. Não conseguia manter um discurso coerente, pensei (pensámos todos) que estivesse a ter um AVC e foi novamente para o hospital. Horas depois, ligaram-nos a dizer que tinha testado positivo ao coronavírus mas não prometeram mais informações até depois do fim-de-semana.

O meu pai

Consegui saber no domingo que estava em estado grave. Tão grave - e com tantas comorbilidades - que talvez nem valesse a pena ir para os cuidados intensivos ocupar um ventilador. Senti naquele domingo que o meu pai ia morrer, em sofrimento, sem uma verdadeira despedida. Entrei numa espiral negativa e não tenho qualquer memória dos dias seguintes.

Comecei a recuperar a consciência com algumas notícias animadoras. Tinha sido transferido para outro hospital. Estava ligado ao ventilador. Os pulmões não estavam muito afetados. Havia sinais positivos. Pequenos mas em tempos difíceis somos capazes de nos agarrar até à simples ideia de um «ainda não morreu».

Quando regressou ao hospital inicial, tive sorte. Numa altura em que as visitas ainda não eram permitidas, tive a possibilidade de vê-lo um dia. Depois três dias depois. Depois dois dias depois. Até ser autorizado pela enfermeira-chefe a visitá-lo todos os dias. Eram dias de dor, de incerteza. Nunca sabia como o ia encontrar. Na primeira vez, não falou nem olhou para mim. Senti que estava com vergonha. Estava longe de imaginar os meses que se seguiriam.

O meu pai estava irreconhecível. As pernas eram do tamanho do meu pulso, não reagia a estímulos, era alimentado por sonda, estava ligado a oxigénio. E, pelo meio, os órgãos iam falhando depois de um ataque tão violento do vírus.

Pus-me no lugar dele. Não literalmente no lugar dele, mas ao contrário. Custava-me mais do que qualquer outra coisa que tinha feito na vida, mas tinha a certeza de que se fosse ao contrário ele não deixaria de me visitar uma vez que fosse. Com a sua conversa, muito possivelmente até ia convencer as enfermeiras a ficar lá dias inteiros.

O meu pai

Ele continuou sem falar comigo mas os olhos já mexiam. Comecei a contar-lhe histórias. Histórias do futebol, de quando era pequeno, de quando entrou sem medo num bairro de lata perto de casa para falar com a mãe de um rapaz que jogava comigo para oferecer toda a roupa que já não me servia. Já lhe tinha contado inúmeras histórias, todas histórias que me enchiam de orgulho dele, mas essa foi a primeira vez em que ele reagiu. «Lembras-te do Zé? Por que é que fizeste isso?». «Tive pena», respondeu-me, numa voz completamente irreconhecível para mim.

Foi uma pequena vitória. Percebi que me ouvia, percebi que pelo menos alguma memória tinha. Podia ter perdido 40 quilos, estar de fralda, não conseguir sequer virar-se para o outro lado da cama sem precisar de ajuda, ter as orelhas em carne viva por causa da máscara, mas foi uma pequena vitória. E acho que foi isso que me motivou. Isso e saber de um caso de alguém que tinha passado pelo mesmo, meses antes, e estava perto da recuperação total. Isso e achar que o pior já tinha passado. Disse-lhe isso vezes e vezes sem conta. Acreditava.

As semanas passaram e os progressos foram muito lentos. Deixou de precisar de máscara de oxigénio. Lembrou-se da namorada que tinha tido uns anos antes. Mas continuava sem ter verdadeira noção de onde estava e do que lhe tinha acontecido. Sentia fome mas ainda não tinha o reflexo necessário para engolir. Quando o conquistou finalmente, tudo lhe soube mal. Deixou de saber mastigar. Ou melhor, mastigar cansava-o tanto que acabava por não comer nada. Tendo acabado de tirar um siso, percebo perfeitamente. Eu estive uma semana sem mastigar verdadeiramente, ele estava há dois meses. As dores no corpo eram lancinantes e dificultavam qualquer tipo de reabilitação. Cheguei a achar que fosse má vontade.

A lotaria diária continuava. Bastava olhar para os lençóis para saber que tipo de pessoa ia encontrar. Se estivessem para baixo, estava quente e delirante. Falava do carro que tinha acabado de comprar, criava histórias sobre a minha mãe e a minha irmã, recuperava discussões do passado. Às vezes magoava. Se estivessem para cima, estava medicado, cansado, a dormir e sem vontade de conversar.

Contava-lhe um pouco de tudo. Nunca se lembrou da minha namorada de nove anos mas guardava informações como a ida de Ronaldo para Manchester, a prisão de Vieira e as repercussões das eleições autárquicas com as vitórias de Moedas, Isaltino e Carreiras. Em alguns momentos, sentia o meu pai de volta. Descobria naquela cara demasiado enrugada e sem músculo, o sorriso que tinha cativado tanta gente ao longo dos anos.

O meu pai

Mas esse pai era já uma figura distante, ausente, inalcançável. Achando sempre que o pior já tinha passado e que começar a comer e a fazer a reabilitação necessária, o tornassem menos dependente, mantive-me à tona de água. A saída do hospital para o lar, a 12 de outubro, foi um marco desejado há muito. Achei que a mudança de ambiente ia ser decisiva. Finalmente, as visitas iam deixar de ser apenas exclusivas para mim. Poderia ver mais gente.

Havia um grupo de cinco pessoas: além de mim, foi o meu tio, o meu primo, a minha prima e o meu outro primo. E depois novamente eu, a 19 de outubro. O dia em que a minha baixa terminava. Contei-lhe que ia voltar a trabalhar. Foi a última conversa que tivemos.

Estou certo de que a última coisa que me disse terá sido «gosto muito de ti» (algo que lhe comecei a dizer impreterivelmente em todas as visitas), mas as últimas palavras de que me lembro foi um «já está na altura de voltares a trabalhar, já, não podes ser baldas».

O meu pai

Sorri. Ia voltar a vê-lo no dia 23 de outubro, faz este fim-de-semana um ano. A filha do meu primo fazia anos e havia um almoço mas não estava com disposição. Na noite anterior, expliquei ao meu primo que não tinha cabeça, pedi desculpa e ficámos de falar mais tarde. Mas naquele sábado, por volta das nove da manhã, recebi um telefonema do médico do lar. Senti-me a ver um thriller em que se descobre o final demasiado cedo. Tinha sido encontrado em paragem cardíaca. Chamaram o INEM, tentaram reanimá-lo mas não conseguiram.

O meu pai tinha morrido. O meu pai. A pessoa a quem andava há dois meses e meio a tentar convencer que o pior já tinha passado, mesmo quando ele se despedia em lágrimas como se fosse a última vez que estivesse a falar com alguém. Mesmo quando falou com a ex-namorada ao telefone pela primeira vez e, por um momento, permitiu-se ser vulnerável, e soltar um «estou vivo» em lágrimas.

O meu pai sofreu. Sofreu de maneiras que não consigo imaginar. Sofreu por algo que continua a haver gente a garantir que é uma mentira, que é uma fraude, que não é/era assim tão mau. E ao mesmo tempo, sinto que sofreu o tempo necessário para me deixar em paz. Sofreu o tempo necessário até sentir que eu estava melhor, que tinha apoio, que até ia regressar ao trabalho. Sofreu o tempo necessário para que eu me conseguisse mentalizar e cruzar a linha de meta como o Derek Redmond. Em dor, incapaz de estar sozinho mas ao mesmo tempo com um conforto de um pai que nunca desapareceu.

O pior é que a vida não é uma corrida de 400 metros. Cruzei aquela meta, sim, mas continuo a dar voltas. A anestesia da dor serviu para enganar durante uns meses, mas voltou em grande nos últimos meses. Os metros da volta seguinte foram em sentido decrescente. Bater no fundo, perder a saúde mental, pôr tudo em causa, ser incapaz de afastar a sombra das coisas que ficaram por resolver. E sentir que os meses continuavam a passar sem que qualquer uma das burocracias estivesse resolvida.

Depois isolei-me, afastei-me do mundo. Estava a percorrer aqueles metros já sem o meu pai e demorava tanto tempo que as bancadas começaram a esvaziar-se. Fez-se noite e também o meu coração escureceu. Fiquei de joelhos, primeiro. Foram os primeiros socos. Depois deitado. Senti-me a arrastar pelo tartã à espera de dar mais uma volta com medo de não ter nada por que ansiar no futuro. E saber que a vida ia continuar a dar voltas e mais voltas.

Pedi ajuda. Demorou tempo. Mas está melhor. O sol está a nascer novamente, chamei pessoas para as bancadas. Não vou voltar a ter um pai a carregar-me até à linha de meta mas percebi que tenho de ter sempre gente por perto, que o isolamento nunca pode ser uma opção. Já não rastejo mas talvez ainda tenha um joelho no chão. Ainda estou a recuperar. Mas consigo olhar para o futuro e ansiar por coisas.

Deixei de me preocupar tanto com o simbolismo. Comecei a dar mais valor e impacto à pergunta: «Será que o meu pai ficaria feliz com isto? Por eu estar a tomar esta decisão? Por estar a ser incapaz desta forma?». Foi o ponto de toque. O ponto de viragem. O meu pai pode ter morrido mas vou continuar a querer ser um motivo de orgulho. A escrever. A ser tão profissional quanto consiga ser em tudo o que tiver de fazer.

Mas não é um caminho que se faça sozinho. Não é só a família e amigos, namoradas ou colegas. É ajuda profissional. É psicoterapia. É ajudar o corpo a ficar saudável para que a mente possa acompanhar. Comer melhor, fazer exercício, criar rotinas. É respeitar a saúde mental como deve ser respeitada. Porque fiquei com os joelhos e cotovelos esfolados de fazer os últimos 400 metros da minha vida e não quero ter de passar por isso novamente. Porque não mereço. Porque ninguém merece.

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