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É Desporto

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08 de Agosto, 2017

O sobrevivente de Hiroshima que venceu a maratona de Boston

Rui Pedro Silva

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Shigeki Tanaka foi um dos quatro japoneses que correram a mítica prova em 1951. Em 1945, tinha 14 anos quando assistiu, praticamente da primeira fila, a um dos momentos mais horrendos da história mundial. Pensou que tinha sido um terramoto… 

 

Um dia diferente dos outros

 

Hiroshima, 6 de agosto de 1945. Eram oito e um quarto da manhã de uma segunda-feira quando Shigeki Tanaka, um rapaz de 14 anos, estava a caminho da escola numa pequena aldeia a cerca de 32 quilómetros da cidade.

 

«Vimos uma luz muito brilhante no céu e ouvimos um pequeno barulho. O chão tremeu um pouco e pensei que tivesse sido um terramoto, mas não ligámos muito na altura», recordou o japonês anos mais tarde.

 

A dura realidade estava prestes a entrar na vida do jovem adolescente. Nesse mesmo dia, ao final da tarde, começaram a chegar os primeiros sobreviventes à aldeia com a roupa queimada. Dez dias depois, Shigeki fez parte de um grupo de rapazes que foi até Hiroshima testemunhar o que se tinha passado e perceber se poderia ajudar de alguma forma.

 

«Não havia sinal de vida. Vimos corpos a flutuar na água e inertes, no meio dos destroços. Os canos tinham rebentado e jorravam água por todo o lado. Algumas partes da cidade tinham sido isoladas pela polícia. Nos grandes edifícios, lá dentro, estavam todos mortos. Algumas das paredes tinham resistido mas estavam rachadas e sem conserto possível. Tinha de ser tudo demolido», contou em declarações ao The Boston Globe.

 

Uma oportunidade chamada maratona

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O Japão tinha sido suspenso de todas as grandes provas e falhara os Jogos Olímpicos de Londres em 1948. O orgulho nipónico estava em causa e o convite do organizador da Maratona de Boston era um motivo mais do que suficiente para ser encarado com uma grande responsabilidade.

 

No ano antes, em 1950, a Coreia do Sul tinha conseguido os três lugares do pódio mas o início da guerra da Coreia fez com que a organização negasse a participação de sul-coreanos, alegando que todos os homens deveriam estar a defender o seu país. No caso dos japoneses, a situação era diferente.

 

Shigeki Tanaka foi um dos quatro atletas que integraram a comitiva a convite do diretor de corrida Will Cloney. A responsabilidade era tão grande que um dos professores de Tanaka sublinhou vezes sem conta a importância de aprender a comer com garfo e faca. Durante dias, os quatro atletas seriam sujeitos a um elevado escrutínio e a imprensa poderia puxar por tudo.

 

A viagem de Tóquio até Boston passou pelo Havai, São Francisco e Nova Iorque. A cada paragem, eram o centro das atenções e iam ao cinema, onde acabavam invariavelmente a receber donativos. «Não tínhamos dinheiro e as pessoas andavam a atirar molhos de notas para o palco para nos ajudar. Por causa disto, sentíamos que não podíamos perder», desabafou.

 

A responsabilidade era enorme, pelo menos aos olhos dos quatro japoneses. «Não falávamos entre nós sobre isso mas compreendíamos o que se estava a passar. Foi muito estranho receber dinheiro dessa forma, quase como se fôssemos pedintes. Depois, aproveitámos para levar açúcar para o Japão, só para verem o quão mal estavam as coisas na altura», continuou.

 

A vitória do «Rapaz Atómico»

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Shigeki Tanaka não era o principal candidato entre os japoneses mas foi, naturalmente, o que recebeu maior atenção da parte da imprensa norte-americana. Afinal, ter estado na primeira fila do pior ato de guerra na história dos Estados Unidos valia mais do que trabalhar na indústria mineira, como Shunji Koyanagi e Yoshitaka Uchikawa, ou numa companhia de sal, como Hiromi Haigo.

 

O The Boston Globe foi lesto a apelidar Tanaka de «Rapaz Atómico». «Senti um grande fardo quando se começou a usar esse termo», confessou numa entrevista em 1996, na centésima edição da maratona. As referências em 1951 iam ainda mais além e apontavam Tanaka como favorito ao triunfo: «Se conseguiu sobreviver à bomba atómica, também há-de sobreviver nas nossas difíceis rampas e avenidas».

 

O japonês não desiludiu quem esperava um grande resultado. Com apenas 20 anos, registou a terceira melhor marca até então da maratona e nem mesmo quando o avisaram, na parte final, que estava ligeiramente atrás do ritmo do recorde, mudou de estratégia: «Não corri para bater recordes, só queria vencer. Não quis arriscar e depois pagar caro».

 

«Quando cruzei a meta estava toda a gente excitada. Fiquei surpreendido com a receção que me deram quando estava perto do fim. Isso deixou-me mais feliz do que qualquer outra coisa porque, afinal de contas, eu era japonês», lembrou.

 

O feito de Shigeki impulsionou uma nova onda de referências ao ataque nuclear ao Japão. Na crónica de um dos jornais, falava-se de um Rapaz Atómico que não tinha sido radioativo mas que surgira tão isolado que até parecera que os adversários receavam aproximar-se dele sem um contador Geiger.

 

Sem ler inglês, nada disto importou para o japonês. Estava feliz, satisfeito por ter tirado o peso dos ombros e por poder voltar para o Japão com o sentimento de missão cumprida, o orgulho intacto e… o açúcar que entretanto comprara.

RPS