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É Desporto

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06 de Setembro, 2016

O que nos deu voz está a deixar-nos cegos

Rui Pedro Silva

Os adeptos ganharam voz com os blogues e as redes sociais mas a evolução da dinâmica fez com que a finalidade fosse subvertida. A era do rumor e da suspeição está a atingir novos limites e alguns órgãos de comunicação social, obrigados a exercer um papel de grande responsabilidade, deixam-se levar pela onda. Para trás está a ficar um rasto de destruição de confiança.

 

Mudança radical

 

Não havia Sport TV. Não havia televisão por cabo. Nos quatro canais, os espaços de informação desportivo eram muito escassos e tirando os telejornais, durante os dias da semana, só me lembro de a TVI ter um programa de curtos minutos no início da madrugada (Fora de Jogo, seria?).

 

Os jornais desportivos tinham acabado de passar a diários e havia público para isso. E sede de informação. Para muitos, era a única forma de ter acesso ao que se passava no desporto nacional e mundial, com clara incidência para o futebol.

 

Não havia capas às três da manhã, havia a vontade de acordar mais cedo, sobretudo no verão, para estar na papelaria às nove em ponto. Aposto que não era caso único. Aposto que houve muita gente a passar pelo mesmo, mais tarde ou mais cedo.

 

A tecnologia mudou radicalmente a forma como lidamos com a informação. O aparecimento da internet foi tímido – o site de A Bola tinha um fundo negro e publicava uma notícia por hora, se o dia fosse agitado –, mas quando carburou não deixou nada para trás.

 

Depois apareceram os blogues. Em 2007, a primeira peça que publiquei na imprensa desportiva nacional foi precisamente sobre eles. Sobre a forma como tinham dado voz aos adeptos dos clubes (no caso Belenenses, Académica e Beira-Mar), como tinham permitido uma aproximação entre o lado de cá e o lado de lá.

 

Em 2016, além de blogues, há redes sociais. Umas mais imediatas do que outras, mas todas com a capacidade de disseminar palavras a uma velocidade vertiginosa. Tão vertiginosa que não é possível, nem interessa, confirmar o que se diz.

 

Interessa é carregar no enter e esperar que do lado de lá haja alguém que leia e ajude a espalhar o conteúdo.

 

Ciclo vicioso

A mesma ferramenta que nos deu voz está a deixar-nos cegos. Era inevitável, na verdade. O poder do boato, do rumor, é irresistível e está a transformar-se numa ferramenta valiosa para quem interpreta a comunicação de outra forma.

 

A internet é cada vez menos um espaço de informação com qualidade. Seja no futebol ou na política, há “adeptos” capazes de vestir a bandeira e fazerem gratuitamente o que, muito possivelmente, outros fazem com compensações.

 

A verdade é sempre o que menos interessa. O que importa é criar buzz, o que importa é tirar o ónus da crítica do lado de cá e colocar o da instabilidade no lado de lá.

 

Nesta altura, o poder do jornalismo e do jornalista é mais importante do que nunca. Numa era em que todos pensamos poder ser jornalistas, em que é fácil e basta escrever umas frases, mesmo trocando à por há e disseste por disses-te, tornou-se cada vez mais fundamental haver quem seja capaz de separar o trigo do joio, a verdade da mentira, o facto do “até faz sentido que tenha sido assim por isso não há problema”.

 

Não estamos a conseguir. E mesmo que exista quem o faça, o público continuará sempre a privilegiar a “noticiabilidade” da polémica, do rumor, do confronto, mesmo que imaginário.

 

Tanto assim é que há órgãos de comunicação social que dedicam cada vez mais espaço e tempo a programas com esta filosofia, desresponsabilizando-se completamente do compromisso ético assumido e escudando-se na ideia de que é isso que o público quer.

 

A ferramenta que nos deu voz está cada vez mais dominada pela guerrilha. Pelo conflito, pela troca de argumentos cuja base treme ainda mais do que pudim flan.

 

A ferramenta que nos deu voz está a deixar-nos cegos, incapazes de interpretar o que é dito, o que está escrito e qual o seu verdadeiro significado. Ficámos preguiçosos e deixamo-nos levar pelo «diz que disse».

 

Se há quem o faça conscientemente, pelos mais variados motivos, outros não têm essa capacidade e são levados por qualquer estímulo que recebam.

 

Não vai correr bem.

 

RPS

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