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É Desporto

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15 de Março, 2018

O lançamento de Christian Laettner em 1992

Rui Pedro Silva

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É considerado por muitos o melhor jogo na história do basquetebol universitário. De um lado estava Duke, o campeão em título e super favorito; do outro, Kentucky, uma equipa que estava a regressar ao torneio depois de bater no fundo e com um grupo de jogadores locais. Esperava-se um resultado desnivelado mas foi preciso esperar pela última jogada do prolongamento. Aí, Laettner fez a diferença. 

 

Resistir aos ventos de mudança

 

Para compreender o verdadeiro impacto de um jogo disputado a 28 de março de 1992 é preciso recuar quatro anos. Foi quando o escândalo de corrupção no recrutamento de jogadores em Kentucky estalou pela primeira vez e lançou a equipa numa espiral negativa.

 

As consequências começaram a aparecer ainda antes de a investigação da NCAA ter chegado a um resultado final, com os principais talentos da equipa a pedirem transferência, Shawn Kemp a dar o dito por não dito e as dificuldades no recrutamento de jogadores a tornaram-se cada vez maiores.

 

Pior só mesmo a decisão da NCAA: Kentucky ia poder continuar a competir mas os seus jogos não contariam para nada. Na primeira temporada nem sequer poderiam ter os encontros transmitidos em estações televisivas nacionais e durante dois anos a equipa estava banida de chegar à March Madness.

 

Os ingredientes do desastre estavam reunidos e o caminho de recuperação foi longo. Começou com a contratação de Rick Pitino para o cargo de treinador. Depois, com a resistência de quatro jogadores que não viraram as costas à equipa no momento mais complicado. Três deles eram mesmo de Kentucky – Richie Farmer, Deron Feldhaus e John Pelphrey -, enquanto um quarto, Sean Woods, vinha de Indiana e decidiu continuar a jogar pelos Wildcats.

 

Fazendo um flash forward até março de 1992 só ficava mesmo a faltar Jamal Mashburn, o jogador de segundo ano que era a estrela da equipa e tinha um futuro na NBA garantido. A equipa era boa mas por cada dose de talento, tinha quatro de paixão e dedicação. Combinadas, faziam uma receita perigosa mas difícil de competir com as melhores equipas do país.

 

E eis que entra Duke, o campeão de 1991 e com o objetivo de ser a primeira equipa a revalidar o título desde UCLA em 1973. Comandados por um já na altura experiente Mike Krzyzewski, tinham em Grant Hill e Christian Laettner as grandes estrelas da equipa. Frente a Kentucky, no jogo de acesso à final four da March Madness, as previsões eram avassaladoras: sim, Kentucky talvez pudesse dar um ar da sua graça mas no final a vitória seria confortável… para Duke.

 

A importância do orgulho

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O jogo foi disputado em Filadélfia, terra do Rocky. E era essa a imagem que Kentucky tentava transparecer: a de uma equipa não-favorita, com menos condições para o sucesso mas que acreditava na garra e na alma para fazer a diferença quando mais importasse.

 

E tinham muito a provar. Enquanto equipa, queriam fazer esquecer uma capa de revista que, anos antes, os tinha apontado como uma vergonha. Enquanto jogadores, não queriam ser «recordados como os tipos que jogaram por lá quando Kentucky não era grande coisa», confessou John Pelphrey.

 

Durante todo o jogo, bateram-se como uma das equipas mais memoráveis de sempre. Apesar da derrota ao intervalo (45-50) e de por mais do que uma vez na segunda parte terem estado a perder por mais de dez pontos, nunca esqueceram as suas origens e o que estava em causa. E, contra todas as expectativas, forçaram o prolongamento.

 

O jogo não foi apenas equilibrado: foi muito bem jogado. Com percentagens de lançamento das duas equipas acima dos 60% (algo raro até para a NBA), Duke e Kentucky foram alternando vantagens no marcador com lançamentos que pareciam ter um grau de dificuldade cada vez maior.

 

Para Laettner, era apenas mais um dia de jogo. O herói de outras paragens estava a fazer o jogo da sua vida e assumiu as despesas do encontro no prolongamento, chegando aos 29 pontos e sete ressaltos com 10 em 10 da linha de lance livre e nove em nove de lançamentos de campo.

 

Mesmo quando foi «estúpido», palavra de Krzyzewski, e pisou um adversário depois de um afundanço, teve sorte. Os árbitros assinalaram falta técnica mas não o expulsaram.

 

Carrossel de emoções

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O prolongamento tinha pouco mais de sete segundos para jogar e Kentucky estava a perder por um ponto mas tinha a posse de bola. Jamal Mashburn tinha acabado de ser excluído por faltas, com 28 pontos no bolso, e faltava uma referência de ataque aos Wildcats.

 

Pitino tinha pedido desconto de tempo. Era preciso encontrar uma jogada ofensiva que resultasse com cinco mecânicos e nenhum artista em campo. Mais do que isso, queria também que fosse a última jogada do encontro: ou viviam ou morriam com ela. O que se seguiu foi uma confusão: Sean Woods pegou na bola e, apesar de ter toda a gente a chamar por ele, ignorou os apelos e partiu para um lançamento de eficácia reduzida.

 

E marcou dois pontos. Foi a pior decisão que podia ter sido tomada mas resultado e deixava os Kentucky Wildcats a vencer por um com apenas 2,1 segundos para jogar. Neste jogo de parada-resposta, era a vez de Duke pedir um desconto de tempo.

 

O cenário parecia impossível. Era preciso fazer com que a bola percorresse o campo de um lado ao outro, haver alguém de Duke a garantir a posse e lançar rapidamente com sucesso. A probabilidade era reduzida mas Mike Krzyewski nunca teve dúvidas.

 

«Limitei-me a dizer que íamos ganhar. Quer acreditem ou não, o importante é termos a expressão certa na cara e as palavras corretas na boca para transmitir a mensagem de que vamos conseguir ter uma boa jogada e vencer», disse o técnico.

 

A jogada não seria fácil. O objetivo era fazer com que Grant Hill fizesse o passe longo para Christian Laettner, que depois teria de se virar para o cesto e tentar o lançamento. E foi isso que aconteceu: Kentucky decidiu não fazer oposição na reposição de bola e Grant Hill teve espaço para aprimorar o passe. Laettner saltou mais alto do que os dois adversários, simulou a ida para a direita, de costas para o cesto, driblou, voltou para a esquerda, virou-se e… ofereceu a vitória a Duke.

 

Viver o impensável

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Ninguém queria acreditar no que tinha acabado de acontecer. Enquanto Laettner corria desvairado pelo campo com os braços no ar, os jogadores de Kentucky estavam caídos no chão, amargurados, derrotados pelo acaso depois de terem ameaçado o que ninguém julgava ser possível.

 

No meio dos festejos, Mike Krzyzewski deu o exemplo. Percebeu o que estava em causa. Sabia que do outro lado estavam vários jogadores que não tinham hipóteses de chegar à NBA e que tinham acabado a carreira, ali, naquele momento de sorte que podia ter caído para qualquer um dos lados.

 

Começou por ir reconfortar Richie Farmer. Depois, dirigiu-se ao comentador da rádio local de Kentucky para deixar uma mensagem a todos os adeptos. Queria realçar o respeito que tinha por aquela equipa e por aqueles jogadores, salientando que numa noite assim não há derrotados.

 

A jogada tinha sido um tiro no escuro. Sim, Duke costumava treiná-la mas era impossível prever o que poderia acontecer. Mas, para começar, tudo se tornou mais fácil quando Grant Hill não teve oposição.

 

Sean Woods garantiu que Pitinho «desenhou a jogada defensiva perfeita». «Tínhamos dois defensores para o melhor marcador deles. O que aconteceu foi que esses dois defensores tiveram medo de fazer falta e congelaram», continuou, referindo-se à marcação cautelosa de Feldhaus e ao recuo de Pelphrey.

 

Universo conspirador

 

Mesmo com isso, era preciso que o universo continuasse a conspirar a favor de Duke. «Tivemos sorte por o Christian ter conseguido apanhar a bola da forma que apanhou numa zona fácil de marcar. Houve muita coisa a correr a nosso favor naqueles dois segundos», comentou Bobby Hurley.

 

Rick Pitino estava desgastado. Disse aos jogadores que não podiam permitir que um jogo ditasse as suas vidas no basquetebol e insistiu que estava muito orgulhoso na equipa. Do outro lado, Krzyzewski reconheceu a sorte no momento exato: «Podíamos perfeitamente ter ficado do outro lado, de quem perdeu. Não tenho a certeza de que houve mesmo uma equipa a perder hoje. Acho que fizemos parte de um dos melhores jogos de sempre».

 

Christian Laettner foi a perfeição. Acabou com 31 pontos e não falhou um único lançamento, nem mesmo quando toda a época estava em risco. Para Krzyzewski foi mais um triunfo: o sucesso com que lidou com um jogador famoso pela sua arrogância e capacidade de irritar não só os adversários mas também os colegas de equipa.

 

«O Christian tinha um fogo e eu era o senhorio de um prédio. Podia usá-lo para aquecer o edifício ou para o deixar queimar tudo», relembrou o técnico. E, naquele dia, Laettner fez a diferença, lançando Duke para o título uma semana depois.

 

«Ganhámos dois campeonatos mas nada foi como aquele momento em que o Christian converteu aquele lançamento», comentou Grant Hill.

 

Kentucky teve uma derrota muito dolorosa mas soube honrar os seus jogadores. Três dias depois, homenageou os quatro jogadores seniores que tinham decidido ficar com a equipa apesar de toda a polémica, retirando os números numa cerimónia com o pavilhão cheio.

 

Nunca ficaram conhecidos por serem apenas aqueles tipos que conseguiram jogar em Kentucky quando mais ninguém lá queria estar. Foram aqueles que, contra todas as previsões, ajudaram uma equipa a reerguer-se das cinzas e ameaçaram o futuro bicampeão até à última décima de segundo. Passaram a ser Os Inesquecíveis.