O fenómeno Fábio Cardoso merece reflexão
Alvalade, 3 de janeiro de 1999. Beto tem uma noite para esquecer e está diretamente ligado aos dois golos do Benfica. A doutrina diverge: há quem diga que foram dois autogolos, há quem diga que foi só um, e Cadete exige que um golo lhe seja creditado. Mas para a história será sempre recordado como o jogo dos dois autogolos.
Alvalade, 18 de março de 2000. O Sporting está obrigado a vencer o FC Porto para subir à liderança do campeonato, numa fase em que o fim do jejum nunca pareceu tão próximo. Já depois de André Cruz ter adiantado os leões, Secretário faz uma asneira de todo o tamanho e oferece a Acosta a oportunidade de fazer o 2-0. O argentino não desperdiça e os leões partem para o tão ansiado título.
Portimão, 2 de janeiro de 2019. Já depois de Ruben Dias ter feito o autogolo que deu a vantagem do Portimonense frente ao Benfica, Jardel tem a oportunidade de evitar o 2-0 com uma bola perdida junto à linha de golo. O brasileiro calcula mal o tempo de salto, executa ainda pior com a cabeça, e direciona a bola no sentido da baliza. As águias não conseguem reagir, perdem o segundo lugar e Rui Vitória sai do comando técnico no seguimento da derrota.
São três exemplos mas podiam ser mais. E envolvem um jogador do Sporting, um do FC Porto e um do Benfica. Foram os primeiros que me vieram à cabeça. Em todos eles, o profissionalismo não foi posto em causa. Beto continua a ser visto como um exemplo do Sporting, Secretário é uma figura do FC Porto – muito subvalorizada pela opinião geral devido à passagem pelo Real Madrid –, e Jardel é neste momento o jogador com mais anos consecutivos na equipa principal do Benfica.
Os três tiveram uma má noite. Afinal, ninguém está imune a isso e os erros acontecem. Há diferenças para o que aconteceu com Fábio Cardoso, confesso benfiquista e da formação do clube da Luz, no Santa Clara-Benfica? Sim, e a principal é muito simples, e pode até ser comparada com a ideia que temos dos tribunais. Se um pobre comete um crime, vai para a prisão. Se o crime é cometido por um rico, vai para casa com pena suspensa.
O erro de um jogador de um clube pequeno tem vindo a ganhar um peso incomportável nos últimos anos. A suspeição sobe de tom a cada jornada e tudo o que acontece só pode ser justificado por alguma premeditação, esquecendo até que, de acordo com a lógica, o jogador de um clube pequeno tende a ser pior do que um de um clube grande.
Ou o jogador está condicionado, ou há dinheiro por trás, ou há um apito ou um polvo a dominar o futebol. É importante destacar esta ideia: não, o futebol não é uma planície verdejante. Estamos fartos de saber, diretamente ou por vias avessas, que há, citando Queiroz, muita porcaria para limpar, mas isso não significa que o simples erro tenha deixado de acontecer.
Fábio Cardoso está longe de ser inocente
O central do Santa Clara não chegou ao intervalo. Escorregou no lance do primeiro golo e foi expulso por uma falta que não foi penálti por pouco. Em segundos, a opinião pública acusou e sentenciou o jogador: tinha feito tudo o que estava ao seu alcance para ajudar o Benfica.
Fábio Cardoso é vítima do contexto mas também é culpado pelas ações. Um profissional, como qualquer outra pessoa, tem todo o direito a ser apaixonado por um clube, a defendê-lo em privado e a não esquecer os anos que por lá passou. Mas ao admitir, como fez no passado, que estava aliviado por não defrontar o Benfica, porque seria o jogo mais difícil da sua vida, abriu uma caixa de Pandora impossível de fechar.
O central confessou que um jogo contra o Benfica o deixaria condicionado numa altura em que estava cedido e, como tal, a regra não permitia que fosse utilizado. O jogador utilizou essa oportunidade para reiterar a paixão pelo clube. O coração falou mais alto e aproveitou a ocasião para angariar algum mediatismo entre os adeptos.
Profissionalmente, cometeu um erro. Desconhecendo o futuro, abriu uma perigosa porta para qualquer situação no futuro em que voltasse a defrontar o Benfica. É natural que jogadores se sintam condicionados, de uma forma ou de outra, quando defrontam os seus clubes de infância/adolescência, tenham ou não lá jogado. Para uns, é uma motivação extra; para outros, é difícil, como o próprio Fábio Cardoso admitiu.
O problema, para ele, é que essa dificuldade confessa foi utilizada contra ele no momento dos erros. Ao admitir aquilo no passado, Fábio Cardoso estava a garantir que não poderia ter um jogo infeliz contra o Benfica no seu futuro sem escapar à suspeição de quem pouco faz para promover o nosso futebol. Se um erro de um jogador de uma equipa pequena já é exponenciado sem haver este contexto, neste caso tudo fica mais complicado.
Um erro que deve servir de exemplo
Fábio Cardoso cometeu um erro que deve ser apontado como exemplo daqui para a frente. Todos perceberam que o central não podia falhar porque seria sempre analisado com base no que tinha escrito no passado. O jogador precipitou-se, não se soube proteger devidamente e foi atacado.
O fenómeno deve ser analisado com cuidado e não se estende apenas a quem está dentro de campo a jogar. As afirmações públicas, numa era em que nada se perde na internet, são catalogadas e ajudam a rotular quem as afirma. Por muito que não influencie em nada, serão sempre vistas, a partir daí, como um handicap para tudo o que a pessoa faça ou diga.
E aqui entra a outra dimensão: a dos jornalistas. Sim, os jornalistas têm clubes. Sim, a maior parte deles são do Benfica, do Sporting e do FC Porto. Mas também os há – e conheço-os – do Belenenses, do Estoril e de várias outras equipas. E são-no verdadeiramente, não apenas para escapar por entre os intervalos da chuva.
Há uma escola que defende que os jornalistas deviam afirmar o seu clube sem problema. Que isso até seria uma vantagem. Que se são profissionais, não haveria problema, e que até ajudaria o leitor a compreender o contexto.
A doutrina diverge mas casos como o de Fábio Cardoso ajudam a perceber por que é tão importante este anonimato. Porque ninguém quer ter uma luz colorida a apontar para os seus textos. Porque ao longo de uma carreira há oportunidades para escrever textos mais agradáveis, e outros desagradáveis. Porque ninguém podia esperar que um portista escrevesse um texto meritório quando o clube estava na sua maior crise dos últimos anos. E o mesmo se aplica a Benfica e Sporting.
Quando comecei a trabalhar numa redação nacional, o Benfica estava numa fase negativa. Os blogues estavam na sua fase de grande crescimento e a ideia geral era comum entre os adeptos benfiquistas: todos os jornalistas eram do Sporting e do FC Porto. Ou, pelo menos, contra o Benfica. Juravam a pés juntos que a comunicação social em Portugal era uma conspiração de quem tinha encontrado uma forma de se vingar do clube com mais títulos em Portugal. Hoje, o cenário mudou, e o Benfica venceu mais títulos nos últimos anos, mas a ideia-base mantém-se a mesma: os jornalistas são todos do Benfica e ajudam a promover o nacional-benfiquismo contra os dois maiores rivais.
Se há jornalistas maus? Que não respeitam a classe e que ajudam a piorar o ambiente? Claro que sim. Mas isso não é razão para que todos comecem a ser vistos à luz de um clube, apenas porque quem lê não partilha da mesma visão.
Um jornalista, um político ou qualquer outro profissional que possa vir a ter uma posição que seja incompatível com este clubismo, deve ser capaz de se proteger de um fenómeno como o de Fábio Cardoso. Deve compreender como uma frase mal dita, ou simplesmente mal interpretada, pode dar azo a uma crise comunicacional.
Fábio Cardoso não é totalmente inocente deste fenómeno mas também não será claramente culpado como fazem parecer. Alguns jornalistas também não o são.