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É Desporto

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12 de Fevereiro, 2019

O dilema moral da goleada

Rui Pedro Silva

Benfica marcou dez ao Nacional

O dez-zero no Benfica-Nacional, a fazer lembrar um sketch dos Gato Fedorento mas sem golos do tratador de relva, teve o condão de acordar o debate moral sobre a goleada. Qual é a linha que separa o profissionalismo da humilhação? O desejo obsessivo de marcar da fogueira do espezinhamento?

 

Não vi o jogo e só soube do resultado depois da hora de almoço do dia seguinte mas os argumentos dos dois lados continuavam vivos nas redes sociais. Afinal de contas, são jogadores profissionais e não haveria humilhação maior do que sentir que do outro lado estava um conjunto que tinha deixado o esforço de lado apenas por uma questão de pena. E mais: isto é uma competição que pode ser decidida nos pormenores e a diferença de golos é um dos primeiros critérios.

 

Do outro lado, da falange de adeptos que imploraria misericórdia a Commodus para salvar a vida do, agora gladiador, outrora general Maximus Decimus Meridius, o argumento recaía na empatia perante os esmagados e respeito numa altura que o jogo estava mais do que decidido e os três pontos a caminho da homologação em sede da Liga.

 

Tenho dificuldade em aceitar uma visão unidimensional da goleada, enquanto conceito abstrato, no futebol, seja ele profissional ou amador. Uma goleada robusta pode ser atingida sem tiques de profissionalismo – mesmo adaptado aos escalões de formação – e um triunfo pela margem mínima até pode ter tiques de malvadez e humilhação superiores a um dez-zero.

 

É o caminho para a goleada que resolve a diferença. Há mais de vinte anos, havia um jogo para a Sega Saturn chamado Sega Worldwide Soccer. À semelhança de tantos outros, o hábito fazia com que fossem encontrados formas de viciar o próprio jogo para ganhar vantagem. Não demorámos muito a perceber que um lançamento em profundidade da zona central do meio-campo, ligeiramente descaído para qualquer um dos lados, provocaria uma saída errada do guarda-redes, socando a bola para o ar e permitindo que o cabeceamento do avançado – que tinha sempre vantagem sobre o defesa – acabasse caprichosamente na rede da baliza.

 

Os golos seguiam-se em catadupa. Não havia futebol. Era apenas uma forma pomposa de garantir um resultado folgado, viciando classificações e listas de melhores marcadores. Conseguíamos estar jogos inteiros sempre com o mesmo ritual: recuperar a bola, fazer o chuveirinho para a área, cabeceamento e golo. Eram uns atrás dos outros.

 

As goleadas nos escalões de formação

 

Lembro-me – demasiadas vezes – de uma coisa que disse durante um jogo de sub-17, depois de termos marcado mais um golo (já lhes tinha perdido a conta) a uma equipa modesta da zona de Carnaxide. A primeira parte ainda não ia a meio e já se adivinhava um resultado próximo do que seria o 15-2 final. «Vamos acalmar um pouco agora», disse aos meus colegas, mesmo que não tenha tido grande efeito prático.

 

Ali, naquele momento, o nosso futebol estava a buscar apenas o resultado gordo, a humilhação (ainda que adolescentes não pensem dessa forma). As fraquezas do adversário tinham sido detetadas – eram sobretudo mais lentos – e os nossos lances de ataque perdiam-se sempre na mesma rotina: velocidade num flanco, superioridade numérica, cruzamento e golo. Já tínhamos deixado de jogar futebol, de praticar o estilo de jogo que treinávamos semana após semana e que testaríamos contra os adversários mais fortes. Tínhamos sucumbido à tentação do golo, descobrindo um atalho e repetindo inúmeras vezes a tecla que nos tinha mostrado como viciar aquele jogo.

 

O meu repto não tinha sido uma falta de respeito pelo adversário, antes uma chamada de atenção para o respeito próprio. Tínhamos de ser iguais a nós mesmos e não monstros em metamorfose seduzidos pelo pecado capital da luxúria de terminar aqueles 80 minutos com uma goleada histórica, gritando a sete ventos durante a semana quantos golos cada um tinha marcado.

 

Mentalidades profissionais

Alemanha goleou Brasil no Mundial-2014

O futebol profissional é diferente. As diferenças, existindo, não são tão claras como nos escalões de formação das associações distritais em Portugal. Mas as goleadas continuam a acontecer. Umas por acidente – onde tudo corre bem a uma equipa ao mesmo tempo em que tudo corre mal a outra -, outras por uma clara mentalidade mecânica.

 

Não é à toa que Bayern Munique e Alemanha tenham sido protagonistas de tantas goleadas memoráveis. O alemão, enquanto jogador, é como um informático que encara o problema como um golo. A cada festejo, tradicionalmente pouco efusivo, os jogadores desligam e voltam a ligar o sistema. São máquinas desenhadas para encarar cada lance da mesma forma, independentemente do resultado. As goleadas aparecem como consequência do profissionalismo máximo.

 

Outras, como as do Real Madrid e Barcelona – ou mesmo de muitas outras equipas latinas ou com sangue predominantemente latino – acontecem pelo talento. Pelo espírito do futebol de rua, pela personalidade traquina de quem vive para as partidas e faz de um jogo destes um momento imortal.

 

A rota para a goleada

 

Onde se encaixa o Benfica-Nacional não sei. Repito, não vi o jogo. Mas sei que não há razão para fazer deste jogo um pretexto para decretar o óbito da competitividade do futebol português – ainda que esse seja um problema -, muito menos para gritar falta (de respeito, personalidade ou empatia) de qualquer um dos lados.

 

O Benfica goleou porque aconteceu. Não foi uma questão de profissionalismo ou falta dele, muito menos de uma obsessão por saber que a diferença de golos pode vir a fazer a diferença no futuro. O Benfica goleou porque teve os ventos a seu favor e o Nacional teve as desfortunas a vir na sua direção. Juntos, combinaram um cocktail explosivo que desenhou um jogo histórico.

 

O Benfica é mais superior ao Nacional do que a Alemanha era em relação ao Brasil, do que o Manchester City era em relação ao Chelsea, ou do que Celta e Sporting eram em relação ao próprio Benfica em 1986 e 1999. As goleadas aconteceram… e pronto.

 

Nada implica que haja uma falta de profissionalismo. Mesmo que não faça sentido, há uma explicação natural para tanta vez se dizer que o 2-0 é o resultado mais traiçoeiro do futebol. É a altura em que os jogadores perdem um patamar de concentração por sentir uma rede extra. Com o avolumar da goleada, passa-se o mesmo. Entre os que marcam, cresce a confiança e a liberdade para fazer tudo bem, entre os que sofrem há uma incapacidade mental para reagir e estancar o problema.

 

Sejam jogadores do Nacional, Benfica, Brasil, Sporting, FC Porto ou Chelsea. Acontece e ninguém está imune. Verdade seja dita, estes jogos, sobretudo este 10-0, têm os ingredientes para se tornarem mais imortais do que qualquer que venha a ser o campeão no final da temporada (excepto o Sp. Braga, vá).

 

Porque o futebol é um livro de histórias. E, muitas vezes, o jogo é superior ao título. O acontecimento isolado, com princípio, meio e fim que se conseguem identificar perfeitamente na narrativa, é mais especial do que um desfecho que se repete anualmente – com algumas exceções. Não é por acaso que raramente as melhores histórias dos Mundiais ou dos Europeus pertencem aos seus vencedores. São os golos e os jogos memoráveis que constroem as lendas.

 

Uma goleada não o é apenas porque sim. Todas têm uma história para contar, um clima, uma narrativa e um clímax. A do Benfica veio tornar a história do futebol português mais rica. Afinal, desde que me conheço como gente, não me lembro de alguma vez uma equipa chegar aos dez golos no campeonato e, em todas as competições, só me recordo de um 12-0 ao Marinhense. 

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