O dia em que Fehér morreu e as pessoas se lembraram de mim
Lembro-me daquele 25 de janeiro de 2004 como se fosse hoje. Acho que toda a gente se lembra. Não é todos os dias que se vê alguém morrer na televisão, um jogador de futebol ainda por cima. Estava na sala, de olhos postos na televisão, quando Fehér se dobrou e caiu desamparado para trás. A minha reação foi imediata. «Pai, queres ver que este morreu em campo?», disse-lhe, da sala para a cozinha, sem qualquer tipo de tom depreciativo ao utilizar o pronome demonstrativo.
Tinha 19 anos e há muito que conhecia a história de Pavão, o jogador do FC Porto que caíra ao 13.º minuto da 13.ª jornada em dezembro de 1973. Também era impossível ignorar a morte de Marc-Vivien Foé, camaronês que sucumbira da mesma forma em junho de 2003. Mas nesse Camarões-Colômbia, ao contrário do Vitória-Benfica, não estava com os olhos postos na televisão. Estava a estudar para os exames nacionais. Aliás, não será surpresa nenhuma perceber que as audiências do jogo do campeonato português naquele domingo à noite eram muito mais elevadas do que a partida da Taça das Confederações.
As horas que se seguiram foram dramáticas. Não quero imaginar o que seria o fluxo de informação não confirmada se já existissem redes sociais, se acontecesse hoje. Já na altura, lembro-me de os vários canais terem feito daquela situação uma prioridade noticiosa. E nem todos acertaram. Imagens de Camacho e Tiago, sobretudo estes dois, tornaram-se icónicas do momento mais triste que pode acontecer num jogo de futebol. Bem como aquela fração de segundo em que o bombeiro (terá sido um bombeiro?), esboçou uma reação de felicidade como se Fehér tivesse expressado algum tipo de resposta, arrastando consigo todo um estádio que há muito tinha esquecido a rivalidade e compreendia a seriedade daquele momento.
Sei que Fehér ainda não tinha sido dado oficialmente como morto quando recebi a primeira mensagem. «Foi isto que te aconteceu?», dizia. Outros vieram dizer-me que se tinham lembrado de mim. A verdade é que até eu próprio me lembrei de mim uma fração de segundo antes de comentar com o meu pai da sala para a cozinha.
Estava tudo muito fresco ainda. Tinha sido operado a 22 de setembro, pondo fim a mais de um ano de episódicos ataques que começaram por ser ignorados. A primeira vez na praia, em Sagres, durante uma sessão de penáltis com um amigo e um primo, com os meus pais nas toalhas ao lado. Senti que algo não batia certo: sem motivo aparente, o coração tinha disparado para cima das 205 pulsações por minuto. Sentia um tambor dentro do peito, como se um pneu tivesse rebentado a alta velocidade e a borracha estivesse a bater com estrondo no resto do carro, provocando uma reverberação intensa.
«Senta-te aí que isso já passa», foi o que me disseram, apesar da minha insistência. Ninguém se preocupou. E, de facto, passou. E consegui esquecê-lo até abril do ano seguinte (2003), quando aconteceu exatamente o mesmo enquanto almoçava no bar da escola secundária. Reconheci a sensação, não disse a ninguém, e esperei que o resultado pudesse ser o mesmo: passar durante alguns minutos. Tentei encontrar uma explicação para o que se tinha passado. Ali, naquele momento, estava apenas sentado a comer, mas há menos de uma hora tinha feito o primeiro jogo do campeonato escolar. Talvez aquela fosse uma consequência de quem começou a comer demasiado cedo. Não sabia, nem fazia sentido. Apenas procurei algo que justificasse aquele momento.
Quando o terceiro ataque chegou, não havia mais como esconder ou ignorar. Aposto que se lembram desse dia: foi um sábado, 3 de maio de 2003. À noite, o Benfica recebeu o Sporting no Jamor naquele jogo que ficou famoso pelo sprint de Zahovic já depois de ser expulso. À tarde, em Sintra, eu fazia o último jogo do campeonato antes da final da distrital de juniores contra o Alverca.
Fui titular mas não joguei mais do que vinte minutos. Voltou a acontecer o mesmo. Perto do banco, expliquei ao treinador que não me estava a sentir bem. Ele pediu-me para aguentar mais um pouco enquanto preparava a substituição. Não foi o pior ataque que tive mas foi o que surgiu no momento mais preocupante: estava, de facto, a fazer exercício. Instantes depois, a bola vem na minha direção e corto a jogada de ataque. Puxo-o para a linha e bato na frente, mesmo junto ao meu banco de suplentes, esgotando qualquer réstia de força que ainda me sobrava.
E deito-me ali, já fora das quatro linhas, perante o olhar de pânico de colegas, treinador e massagista. Este último põe-me a mão no peito e fica branco de terror. Diz-me que também eu estou branco. Não me lembro de estar preocupado. Era a terceira vez que acontecia e pelo menos ali, naquele momento, já não estava a correr. Ia acabar por passar, como sempre, esperava eu.
E passou. Mas desta vez, ao contrário de tantas outras, ninguém esqueceu. O treinador fez pressão para que fizesse testes e a minha mãe entendeu que aquilo não era uma brincadeira. «Percebi que era grave porque se foi o suficiente para ele ter pedido para sair, era porque era alguma coisa séria», costuma contar.
Nos dois meses que se seguiram, fiz todos os exames cardiológicos que conhecia e outros que nunca tinha ouvido falar. Não acusaram nada. Quando contei o que se passava, o primeiro cardiologista escreveu uma carta para apresentar numa consulta em Santa Cruz, falando desde logo numa operação. Quis-se uma segunda opinião. «Não considero o Rui uma pessoa doente, mas não garanto que se continuar a jogar não pode cair para o lado e morrer daqui a dez anos», disse o segundo cardiologista.
As palavras não foram propriamente reconfortantes, mas serviram de aval para esquecer o que se tinha passado. O problema é que… o meu problema não queria ser esquecido. Em julho, um mês depois da morte de Foé, fui jogar ténis com uns amigos, entrei num court, atirei uma bola ao ar, bati-a sem grande força com a raquete e voltou tudo ao mesmo. Não dava mesmo mais para fugir: ia para Santa Cruz a pensar que a operação ia acabar por chegar.
Aí, nem precisei de falar. O médico leu a carta e interrogou-me durante minutos sem parar. A cada pergunta que ele fazia, eu só dizia que sim. É como se soubesse tudo o que se passava, como acontecia e como acabava. Ao último sim, esqueceu as perguntas. «Ok, vamos marcar uma operação. Pode ser 22 de setembro? Marco-o logo para a primeira da manhã».
A operação foi simples, na altura. Não foi preciso abrir o peito, apenas fazer entrar um cateter pela virilha, chegar ao coração e provocar vários ataques até perceber exatamente onde estava o problema. À quinta ou sexta vez, depois de vários falsos alarmes e de litros de suor derramados, confirmo. «Sim, é isto que costumo ter!», disse, já depois de desistir de olhar para os monitores gigantes que mostram o avanço dos fios em direção ao meu coração. É nessa altura que fazem entrar um outro fio (peço desde já desculpa pela linguagem médica pouco correta) para queimar o problema.
Se tudo corresse bem, daí a duas semanas estava de volta aos treinos. Assim, simples, como se fosse algo banal. Hoje, olho para este problema como algo banal. Sim, tinha 18 anos apenas, mas há quem o faça mais novo. E apesar de a descrição do síndrome dizer que «pode levar à morte súbita em alguns casos vinculados ao excesso de exercícios e desporto, se não for devidamente tratada e acompanhada», nunca senti que o meu fim estivesse próximo.
Fehér não teve essa sorte. Não, o problema não foi o mesmo, foi muito mais grave. Mas ele, tal como eu, não sabia. Ninguém sabia. E, ao mesmo tempo, ninguém quis acreditar que não fosse possível saber. Naquela segunda-feira, já depois de ter sido operado e no dia seguinte à morte de Fehér, ninguém falou no balneário. Era o silêncio ensurdecedor de quem não parava de pensar que a fragilidade da vida humana não vê distinção entre profissionais e uma equipa de sub-19 de Lisboa.
Quando começámos a correr à volta do campo, surgiram as primeiras perguntas. Ninguém sabia bem o que se tinha passado, mas havia quem se questionasse se me podia ter acontecido aquilo. E recordou-se o que cada um tinha sentido ao ver-me caído em frente ao banco de suplentes. Mesmo fora do futebol, quem sabia o que se tinha passado fazia perguntas semelhantes. No fundo, não estávamos habituados a fragilidades daquelas, a momentos dramáticos, a ver alguém morrer na televisão.
Desde então, não tenho perdido uma oportunidade para saber mais sobre o tema. Durante a faculdade, fiz um trabalho exatamente sobre isso, chamado “De tanto bater o meu coração parou”, como o filme, e que passava pelas histórias de Pavão, Foé, Fehér, Bruno Baião e Hugo Cunha. Como eram os exames médicos, o que se estava a fazer mal, e o que se podia fazer melhor. Já como jornalista continuei atento e estive numa conferência sobre o tema, no Hospital da Luz, com vários especialistas.
Fehér morreu mas acordou o país para esta problemática. O problema congénito do húngaro seria impossível de detetar se não se fosse à procura especificamente de uma malformação no ápice do coração. Mas ficámos mais alerta para a problemática de garantir que nos é possível excluir tanto quanto possível antes de arriscar a vida de alguém.
Não foi por este avanço que Fehér sorriu. Mas podia ter sido.