O dia em que Estaline viu jogar o Spartak Moscovo
Moscovo, 1 de julho de 1936. A União Soviética está ainda longe de imaginar as amarguras que os anos seguintes vão trazer a milhões de russos. Adolf Hitler parece para já ainda mais preocupado com o sucesso dos Jogos Olímpicos que vai organizar daí em breve e Estaline aproveita para assistir a mais uma parada do Dia da Cultura Física.
A iniciativa nasceu em 1931 e não estava muito longe do conceito de parada militar, embora associada a atividades físicas, não necessariamente desportivas. Milhares de homens, mulheres e crianças participavam todos os anos no piso empedrado da Praça Vermelha, com vista para a Catedral de São Basílio e para o Kremlin. Eram horas e horas de demonstrações que só estavam ao alcance de Estaline, dos membros mais importantes do partido e de dez mil pessoas – o máximo que era possível enfiar na praça.
Em 1936, no ano em que a Liga Soviética arrancou formalmente, ia acontecer algo inédito: Estaline ia ver um jogo de futebol. O Dínamo Moscovo tinha conquistado o título da primavera, mas o Spartak, futuro campeão da edição de outono, ia ser o protagonista no epicentro da cidade moscovita.
«Por esta altura já tinha sido estabelecido que apenas uma equipa era capaz de mobilizar adeptos independentemente da sua afiliação organizacional, fosse como trabalhador dos caminhos-de-ferro, de agente secreto da política ou como membro do exército», pode ler-se no livro de Robert Edelman sobre a história do Spartak Moscovo.
O clube que tinha nascido e crescido graças aos irmãos Starostin tinha-se tornado famosa pela sua matriz popular e sem direito a um padrinho, mas foi só depois de Aleksandr Kosarev, primeiro-secretário da organização juvenil da União Soviética (Komsomol), se ter aliado aos interesses do Spartak que o clube se solidificou e ganhou acesso a outros palcos.
A Praça Vermelha em 1936 foi o mais importante. Vivia-se uma era de grande bicefalia entre Dínamo e Spartak. As duas equipas dividiram todos os títulos do período pré-guerra e os dérbis eram o espetáculo mais procurado da capital soviética, com mínimos de lotação acima das 60 mil pessoas.
O certo é que naquela tarde de 1 de julho de 1936, só uma equipa esteve presente à frente de Estaline. E o culpado foi precisamente Kosarev que, em conversa com Nikolai Starostin, se interrogou a razão para não poder haver um jogo de futebol na Praça Vermelha.
A iniciativa era ousada e obstáculos não faltavam. O piso empedrado teria de ser substituído por um enorme tapete verde, cosido precisamente por atletas do Spartak. Depois havia ainda o risco de lesões, de bolas a ultrapassarem as muralhas do Kremlin ou mesmo a atingir membros superiores do partido. No pior dos cenários, um olho à Spartak de Estaline seria um pesadelo insuperável.
Estaline não era um ávido fã de desporto. Nem sequer modesto, na verdade. Não assistia a eventos desportivos mas, por outro lado, era incapaz de faltar a esta demonstração onde, basicamente, era exaltado como um herói. Por isso, desde o início, o único objetivo foi sempre agradar à figura máxima.
Em vésperas da prova, o General Molchanov da polícia secreta levantou uma série de questões, sobretudo relacionadas com o piso, e enfatizou a péssima experiência que seria se o piso mais rijo do que o habitual, mesmo apesar do tapete verde, provocasse lesões à frente de Estaline.
Kosarev não vacilou. Chamou um jogador da equipa de reservas, Aleksei Sidorov, e pediu-lhe para se deixar cair no chão e levantar de seguida para perceber se deixava marca. A resposta foi negativa e o jogador até se ofereceu para cair uma segunda vez. Molchanov deixou-se convencer, Kosarev sorriu e Sidorov mordeu a língua. No dia seguinte, afinal, tinha a coxa cheia de nódoas negras.
Tinha de estar tudo preparado até ao mais pequeno pormenor. «As paradas de Estaline serviam para suportar o simbolismo da ordem e controlo de caráter do desporto soviético tanto para o público nacional como internacional. O dia da Cultura Física não era um dia desportivo mas sim um teatro político, supervisionado por um encenador, Valentin Pluchek», escreveu Robert Edelman.
De facto, o argumento estava escrito. A equipa principal ia jogar contra a equipa de reservas, o encontro teria a duração de meia hora e haveria sete golos para manter Estaline interessado. Se o ditador soviético demonstrasse sinais de aborrecimento, Kosarev estaria lá ao lado, com um lenço branco, pronto para acenar e ditar o apito final da demonstração.
O guião fugiu ao pensado. Jogaram-se 45 minutos e o balanço final foi um sucesso. Tanto que, três anos depois, voltou a acontecer mas de forma muito mais simbólica, com um jogo entre equipas do Spartak e do Dínamo. A diferença? Foram vinte minutos sem golos marcados. Talvez Estaline tivesse ficado fã de ofensivas anuladas. Afinal de contas, estávamos em 1939.