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É Desporto

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17 de Fevereiro, 2017

O boicote africano ao Mundial-1966

Rui Pedro Silva

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Eram 15 seleções em campo mas não havia garantia de uma vaga na fase final de Inglaterra. A inflexibilidade da FIFA forçou a CAF a cumprir a ameaça de boicote à qualificação, abrindo uma autoestrada para o apuramento da Coreia do Norte e para a mudança de acessos a partir de 1970. 

 

Mudam-se os tempos…

 

O Mundial da Rússia vai ter cinco equipas africanas apuradas. Se a qualificação terminasse agora, República Democrática do Congo, Nigéria, Costa do Marfim, Burkina Faso e Egipto poderiam começar a fazer planos para a fase final na Europa.

 

Mas nem sempre foi assim. Em 1966, também na Europa, a fase final de Inglaterra sabia há muito que não teria nenhuma seleção do continente africano. Os tempos eram outros, é certo, só havia 16 finalistas (metade do que haverá em 2018) e a FIFA estava nas mãos de europeus.

 

O continente africano dava os primeiros passos de independência após o colonialismo e a federação africana de futebol (CAF) só tinha sido criada em 1957. Por esta altura, o Egipto continuava a ser o único país do continente a marcar presença na prova, em 1934, sem ter de defrontar qualquer rival africano.

 

A própria FIFA não estava habituada a lidar com o novo fenómeno, como se percebe pelos anos de afiliações. Naturalmente, o Egipto teve a primeira federação a fazer parte da FIFA, em 1923, recebendo a companhia do Sudão em 1948 e da Etiópia em 1953. O Gana, grande potência africana dos anos 60, juntou-se em 1958 e a nova década, marcada pelo contágio das independências, registou uma entrada massiva de novos membros.

 

Marrocos, Tunísia, Nigéria, Somália e Uganda em 1960, Guiné-Conácri, Costa do Marfim e Mauritânia em 1961, Benim, Libéria, Mali, Senegal, Togo, Camarões, Congo, Madagáscar, Maurícias em 1962. No total, entre 1960 e 1964, ano em que o boicote se tornou oficial, a FIFA ficou com 26 novos membros africanos.

 

… mudam-se as vontades

 

A qualificação para o Mundial-1962 já tinha provocado alguns problemas. O Sudão e o Egipto (competia com o nome de República Árabe Unida) desistiram depois de a FIFA ter recusado a remarcação de jogos por causa das monções, enquanto Marrocos, Tunísia, Gana e Nigéria discutiram a vaga que daria acesso ao play-off com um adversário europeu.

 

Marrocos fez o possível mas não evitou a eliminação frente à Espanha, deixando África sem representantes uma vez mais.

 

Para o Mundial-1966 tudo seria diferente. Em vez de seis interessados, houve 15 seleções (mais a África do Sul) a entrarem no processo de qualificação. Ou, pelo menos, a demonstrarem interesse. Devido ao apartheid, a África do Sul foi deslocada para a qualificação asiática por pressão das outras federações africanas. Mais tarde, seria mesmo suspensa sem chegar a jogar.

 

Gana, Guiné-Conácri, Camarões, Sudão, Argélia, Libéria, Tunísia, Mali, Marrocos, Senegal, Etiópia, Gabão, Líbia, Nigéria e Egipto queriam fazer história mas a FIFA não facilitou, criando um mecanismo de qualificação que faria com que os três vencedores da segunda ronda fossem forçados a disputar um último grupo com o vencedor do play-off entre Ásia (Coreia do Norte) e Oceânia (Austrália).

 

A primeira ameaça

 

O Mundial teria dez seleções: dez europeias, quatro da América do Sul e uma da América Central e Caraíbas. Ficava a sobrar apenas uma e não havia qualquer garantia de que os africanos pudessem ter um representante. O esquema não agradou e um diretor ganês, Ohene Djan, que também era membro do comité executivo da FIFA, manifestou isso mesmo em telegrama.

 

A mensagem era clara: demonstrava a forte objeção às injustas decisões e lamentava que os países africanos e asiáticos tivessem de continuar a lutar pelo meio de rondas de qualificação difíceis para haver apenas uma vaga em causa. «É patético e inédito», reclamava.

 

O pedido de reconsideração não mereceu qualquer atenção de Stanley Rous, presidente da FIFA na altura. O ultimato de julho de 1964 foi ignorado e três meses depois os africanos cumpriram o prometido, deixando uma autoestrada aberta para a viagem da Coreia do Norte até Inglaterra.

 

De uma forma curiosa, esse detalhe acabou por ajudar. Foi contra a Coreia do Norte que Eusébio, um jogador nascido em África, brilhou e fez perceber que um continente tão grande teria margem e talento para crescer.

 

A partir do Mundial seguinte tudo foi diferente. Pela primeira vez, África teve uma vaga garantida, tal como a Ásia, e Marrocos foi a primeira representante.