Nos bastidores da NBA. O eixo Los Angeles-Boston-Chicago
Não é apenas o continente ou a modalidade que mudam, é tudo. A abertura aos jornalistas nada tem a ver com o que acontece no cotovelo da Europa. E ali, nos próprios balneários, ficamos frente-a-frente com jogadores como Pau Gasol, Kobe Bryant, Shaquille O’Neal ou LeBron James.
Numa realidade paralela
Os corredores têm largura suficiente para passar um carro de golfe em cada sentido. Junto a uma porta, quando chegamos, já há um conglomerado de jornalistas, vestidos de fato e gravata, à espera. Praticamente não falam. Estão à espera, sabendo perfeitamente o que os espera. Nós não. É uma experiência nova.
A NBA garantiu-nos (a mim e ao Rui Miguel Tovar) credenciais para três jogos dos Lakers. Depois de um período de validação dos pedidos, que incluía provar que éramos jornalistas, apresentar provas de trabalhos passados e apresentar uma carta do órgão de comunicação a confirmar a solicitação, enviou-nos um briefing a explicar como tudo se passava.
Os balneários das equipas estariam abertos aos jornalistas a 90 minutos do início do jogo e assim continuariam pelos 45 minutos seguintes. Depois, no final do encontro, haveria novo período de disponibilidade, mais curto, poucos minutos depois do final do jogo.
Não sabíamos bem ao que íamos mas ali estávamos, de pé, sentindo um mundo que não era o nosso e sem perceber exatamente o que aconteceria a seguir, que tipo de disponibilidade haveria e o nível de abertura dos jogadores para conversarem connosco.
Dérbi de Los Angeles
É o último jogo da fase regular e estamos a 14 de abril de 2010. É um dérbi de Los Angeles. Se os Clippers estão no início da era Blake Griffin (sem jogar na época de rookie) e DeAndre Jordan é pouco mais de um ilustre desconhecido, os Lakers são campeões e têm na dupla Kobe Bryant-Pau Gasol o seu grande trunfo.
Quando as portas abrem, não há correria. Quem está mais habituado, sabe ao que vai e reconhece que tão cedo não terá nada para fazer. O balneário dos Lakers está deserto. Ainda não chegou ninguém ou, se chegou, estão noutras salas vedadas aos jornalistas.
Os minutos passam e o panorama muda de figura. Lamar Odom vagueia pela sala mas ninguém lhe liga. «Vocês não se importam comigo mas se eu quisesse dava cabo de vocês todos», murmura, naquilo que acreditamos ser um misto de desconforto e brincadeira. Sasha Vujacic também já está sentado a um canto e, entretanto, chega um surpreendido Pau Gasol: «A sério? Já é hora de estarem cá dentro?».
O espanhol está num canto do balneário e ninguém parece interessado em ir falar com ele. Tento a minha sorte e, enquanto se equipa, concede-me uns dez, quinze minutos para uma entrevista. Fala-se de basquetebol, futebol, Espanha e, pelo meio, somos interrompidos pelo burburinho que se gera quando Kobe Bryant entra, apenas por uns segundos, e sem responder a qualquer solicitação.
Quando a azáfama passa, resta Sasha Vujacic, então namorado de Maria Sharapova, com quem haveríamos de nos cruzar num elevador no final do jogo. O esloveno tem um feitio muito próprio e tirou o dia para dar aulas de pronúncia. Esqueçam tudo o que sabem sobre como dizer Zahovic ou Pavlin. Mesmo que esteja certo, Vujacic vai arranjar uma maneira de alterar ligeiramente uma vogal para nos remeter para o nosso canto. Tudo isto enquanto nos diz que o futebol português é pobre e nem vale a pena perder tempo a vê-lo.
«Você é brasileiro?»
Inglaterra nunca tinha recebido um jogo da fase regular da NBA quando, em 2011, os Toronto Raptors e os ainda New Jersey Nets tiveram uma dose dupla em março. A expectativa era enorme, não só por ser a primeira vez que a liga saía da sua fronteira desde 2003 (Sonics e Clippers jogaram no Japão), mas porque os Nets viviam um período de euforia provocado pelo aparecimento do magnata russo Mikhail Prokhorov.
Os Nets são a equipa favorita do público, pelas mais estranhas razões. Atrás de mim, na primeira fila após a bancada de imprensa, uma britânica grita a plenos pulmões por Kris Humphries, o na altura namorado de uma das Kardashian. «Mas quem é que pode estar por uma equipa canadiana?! Isto é a NBA», afirma também, não percebendo como há pessoas a festejar os pontos de José Calderón, DeMar DeRozan e companhia.
Os Nets são comandados por Deron Williams, ainda no seu período positivo, mas já longe de replicar o que fez em Utah. Antes de um dos dois jogos, tento falar com ele. É complicado. A abertura dos balneários aos jornalistas não é sinónimo de disponibilidade dos jogadores. Deron Williams é seco e direto, enquanto continua com os headphones nos ouvidos: «Não vou falar hoje!».
No outro balneário, já depois do jogo, Leandro Barbosa é mais aberto. O brasileiro ouve-me e deixa-me um pedido: «Falo depois do banho, pode ser?» Por quem sois, Leandrinho, claro que pode. Eu espero.
E esperei, desconfiado. Quando se acumulam anos de jornalismo e telefonemas com entrevistas marcadas (ou simplesmente atendemos demasiados telefonemas de empresas de telecomunicações e afins), começamos a perceber que o adiar por uns minutos pode ser apenas uma desculpa para um não futuro.
O base tomou o seu tempo. Foi tomar banho, voltou, vestiu-se tranquilamente. Chegámos a pensar que a oportunidade tinha voado. Mas não. Assim que se sentiu despachado, olhou em redor e fez um sinal para me aproximar. «Você é brasileiro?», perguntou. Não, sou português. «Ah, legal!». E a conversa flui, naturalmente, nos minutos seguintes.
Falamos de David Luiz, com quem trocou um cumprimento durante o jogo, dos jogos de futebol que havia no balneário dos Phoenix Suns, com Shaquille O’Neal a fazer de guarda-redes e Steve Nash a brilhar, e das suas perspetivas de carreira.
Pelo meio, um jornalista norte-americano aproxima-se, de gravador em punho. Tenta captar algumas frases da conversa e resiste, de forma inglória, até perceber que se está a falar em português e não tem grande hipótese.
Foi assim que Godzilla dominou uma cidade?
De março para abril de 2011. De Londres para Boston. Os Celtics ainda estão um bocado em estado de choque, após a troca de Kendrick Perkins. A fase regular está a acabar e as expetativas são elevadas. Mas os labirínticos balneários fazem com que o acesso dos jornalistas seja praticamente irrelevante.
Durante os 45 minutos não há Paul Pierce. Nem Kevin Garnett. Nem Ray Allen. Nem Rajon Rondo. Estão todos numa sala subjacente, que se consegue ver durante o entreabrir de uma porta. Há quem esteja a aquecer os músculos mas, na maior parte do tempo, estão apenas em amena cavaqueira, longe das perguntas dos jornalistas.
Ali, connosco, há apenas as segundas linhas. Aproveito para falar com Nenad Krstic, Jeff Green e Carlos Arroyo. Conversas curtas, não há milagres. E aguardo, teimosamente, pelo fim dos 45 minutos. Os jornalistas parecem estar à espera da sua vez no centro de saúde. De olhos no telemóvel ou no chão, esperam que possa aparecer alguém que ajude a ganhar o dia.
Eu não sou exceção. E é precisamente num momento desses que, de olhos no chão, noto algo sobrenatural. Pode um pé ser mais largo do que os nossos dois, com ténis, juntos? Se não pode (ou não era), pareceu. Aqueles dois pés gigantescos, dentro de chinelos, percorrem a sala de uma ponta à outra, apenas de passagem, e demoramos praticamente esse tempo inteiro a perceber o que se está a passar.
Quando finalmente aparece o reflexo de levantar a cabeça, surge a confirmação. Só podia ser Shaquille O’Neal. Há grande, muito grande, enorme, gigantesco, anormal e depois há Shaquille O’Neal. Mesmo em balneários da NBA, é difícil alguém provocar uma sombra tão grande e destacar-se tanto.
O tempo de espera faz-me tentar perceber se algo de diferente se passará no balneário dos NY Knicks. É praticamente do outro lado da porta, uns metros mais à frente no corredor. É muito mais pequeno do que o dos Celtics e pode até assemelhar-se a um qualquer balneário dos escalões distritais em Portugal.
Numa marquesa, Amar’e Stoudemire ativa os músculos das pernas, em mais um exemplo onde a dimensão intimida. De resto, não há muito por onde fugir. Landry Fields é o rookie sensação, acarinhado pelo realizador Spike Lee, e falamos um pouco sobre isso, sob o olhar atento (e gozo) de um colega de equipa.
A entrevista com um decacampeão
De Boston para Chicago, exatamente um ano depois. No espaço de uma semana, os Bulls jogam em casa com os Celtics, os Knicks e os Heat. São três oportunidades que, agora que já conhecemos melhor a dinâmica completa de cada momento, podem ser bem aproveitadas.
No primeiro jogo, os Celtics voltaram a demonstrar que são perfeitos a evitar o período aberto aos jornalistas mas nem por isso a noite é desperdiçada. No buffet para jornalistas – há sempre comida disponível nos pavilhões e nem sempre é preciso pagar – encontramos Tommy Heinsohn sozinho numa mesa.
Apesar de não ser dos nomes recordados de forma automática no passado dos Celtics, o agora comentador televisivo numa estação de Boston conta com dez títulos de campeão: oito como jogador e dois como treinador. Ouço-o na televisão quase diariamente, sei como é o seu feitio e acho que pode dar uma entrevista agradável.
A sua postura é de quem já viveu tudo o que tinha para viver. Está no seu habitat natural e não devo ser o primeiro a tentar uma entrevista daquela forma. «Claro, senta-te aí», responde-me, sabendo que ainda tem muito tempo livre até começar o jogo.
Antes de começar a responder às perguntas, faz questão de estabelecer algum tipo de ligação comigo. Diz-me que conhece pouco de Portugal mas sabe quem é Mourinho. A neta joga futebol. Depois deste período intermédio, aceita entrar no DeLorean comigo e leva-me ao tempo de Red Auerbach. «Levava-me muitas vezes ao cinema», recorda, entre vários episódios dos anos 60 e 70, com destaque para o brilho em campo que Bill Russell tinha.
Eventualmente, as perguntas esgotam-se mas a conversa continua. É o lado de comunicador e de «homem à antiga» de Heinsohn. Se ele está ali sentado, se eu estou ali sentado e se estamos os dois à espera do jogo, não há razão para não continuar a conversar.
Quando nos levantamos, agradeço mais uma vez e sigo o meu caminho. Ele vai ficar junto ao court, eu vou para a zona reservada aos jornalistas no topo do pavilhão. Durante a caminhada, mais um momento de burburinho. Scottie Pippen surge, acompanhado de uma enorme comitiva, a caminho do seu lugar.
Os Chicago Bulls têm livros de temporada disponíveis em todos os jogos. Têm as estatísticas de cada jogador e os perfis. É uma excelente ferramenta para estudarmos melhor cada elemento, especialmente tendo em conta que poderemos estar a conversar com eles no final do encontro.
Há um que desperta mais atenção: Luol Deng. Refugiado do Sudão, foi viver muito novo para Londres e tornou-se adepto do Arsenal por causa de Ian Wright. Conhece a realidade europeia e está na NBA há uma eternidade, sempre pelos Bulls. Mais do que um jogador interessante, é um homem interessante, com uma história de vida especial.
E não desperta tanta atenção. Se quando lá estiveram os Miami Heat não se conseguia ver mais do que a cabeça de LeBron James no balneário, engolido por mais de vinte jornalistas, com Luol Deng havia espaço necessário para conseguirmos algo mais exclusivo e, sobretudo, disponibilidade.
Luol Deng tem os pés numa geleira repleta de gelo. O esforço físico contínuo paga-se caro e todos os segundos são importantes para recuperar. Quando lhe pergunto se tem uns minutos para falar connosco, responde com simpatia, sobretudo quando percebe que o tipo de perguntas foge aos estereótipos de final de encontro.
«O dia da independência do Sudão do Sul foi o mais feliz da minha vida», diz, com orgulho, acreditando sinceramente que a situação vai mudar para melhor. Falo-lhe do Arsenal, de Ian Wright e Deng não esconde a surpresa: «Mas como é que sabes tudo isso?» Um jornalista que entretanto se aproximara, entra na conversa: «Ele faz o trabalho de casa. Olha, e o que dizes do que aconteceu no terceiro período?».
Luol Deng muda automaticamente de expressão. «Não estou aqui para falar sobre o jogo», responde-lhe de forma seca, voltando a olhar para mim, como quem pede desculpa pela interrupção e aguarda pela pergunta seguinte. Obrigado, Luol.
RPS