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É Desporto

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03 de Fevereiro, 2018

Nigel Owens. O árbitro que se tentou matar porque não queria ser gay

Rui Pedro Silva

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Galês bateu no fundo do poço em 1996 quando achou que não tinha outra solução e que ia privar os pais de alguma vez poderem vir a ser avós. Nigel Owens foi salvo no meio das montanhas em estado de coma, recuperou, ganhou confiança e tornou-se um dos melhores árbitros na história do râguebi. 

 

Um final premeditado

Publicado originalmente, com ligeiras diferenças, na edição de 31 de outubro de 2015 do jornal i. 

 

Quando saiu de casa às três e meia da manhã de um dia de 1996, Nigel Owens, nascido em 1971, pensou que nunca mais ia ver os pais. Estava acordado há uma hora e tinha-se levantado sem fazer barulho, de forma a que ninguém o impedisse. Para trás ficou um bilhete a justificar o suicídio como única solução possível. Com ele seguiram duas caixas de paracetamol, uma garrafa de whiskey e uma caçadeira carregada. O galês de Mynydd Cerrig deu uma última volta à terra que o tinha visto crescer e seguiu para as montanhas. Pouco depois, entrou em coma.

 

A pressão que Nigel Owens sentia era enorme. Sofria de bulimia, estava obcecado com o peso e tinha encontrado no ginásio a solução para substituir a gordura por músculo. Para acelerar o processo, começou a tomar esteróides e ficou viciado. «Estava a entrar num caminho que não tinha saída e fiz algo de que me arrependerei para sempre», lamentou, anos depois, num documentário exibido pela BBC.

 

Nigel não morreu por pormenores. Primeiro, por ter entrado em coma antes de decidir disparar. Depois, porque foi encontrado por um helicóptero a tempo de ser levado para o hospital, onde permaneceu vários dias.

 

«Tinha vergonha do que tinha feito, de ter tentado matar-me quando há gente a morrer todos os dias de doenças terminais e que dariam tudo para continuarem vivas. Mais do que tudo, senti-me envergonhado pela carta que deixara aos meus pais. Não consigo sequer imaginar o que pensaram, o que lhes passou pela cabeça quando leram que eu não conseguia aguentar mais», contou, revelando o desespero da mãe: «Disse-me que se o fizesse outra vez, que a levasse e ao meu pai também, porque não queriam viver sem mim.»

 

A reação dos pais foi o ponto de viragem. Afinal, era também por eles que tinha chegado àquele ponto. Sendo filho único, recusava privá-los de serem avós no futuro. Por isso reprimiu o que começou a sentir com 18 anos. «Tudo aconteceu porque não queria ser gay. Andava a lutar há anos. Não havia nada de mau em ser gay, mas sentia que não me enquadrava. Tive várias namoradas, mas senti sempre que algo não estava certo. E pensava: ‘Vou obrigar-me a apaixonar--me por esta rapariga.’ Mas isso nunca aconteceu. E nunca aconteceria. A partir de dado momento, percebi que não conseguia viver mais assim», contou, recordando a primeira vez que teve algo com um homem. «No segundo seguinte, senti-me doente, fisicamente doente, envergonhado pelo que tinha feito. Não estava a aceitar o que era e fiquei deprimido.» Daí até à tentativa de suicídio foi um pequeno passo.

 

Paixão assumida

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Nigel Owens continuou sem contar que era gay e centrou atenções numa paixão que podia assumir sem rodeios: a arbitragem. A carreira começou depois de ter falhado uma penalidade decisiva no último jogo da equipa da escola, que poderia ter sido o único triunfo da época. «Queria ser o herói, mas a bola saiu junto à bandeirola. O professor veio falar comigo e disse-me que, se calhar, teria mais sucesso como árbitro. Ele estava meio a brincar, mas eu levei aquilo a sério.»

 

Os primeiros passos não foram fáceis. Nigel tinha 16 anos e o pai não era um ás na condução. Por isso, para o primeiro jogo, seguiu com o autocarro da equipa do Nantgaredig. «O Tregaron perdeu 6-9 e no balneário não ficaram muito contentes.» A partir daí, por mais longe que fosse o jogo, nunca mais foi à boleia. Derek Bevan, o primeiro árbitro galês a dirigir uma final de um Mundial (Austrália-Inglaterra em 1991), lembrou à BBC os sacrifícios que Nigel fazia: «Se fosse preciso, levantava-se às sete da manhã e apanhava um, dois, três autocarros diferentes.»

 

O sucesso na arbitragem fê-lo galgar patamar atrás de patamar e em 2005 teve o primeiro jogo internacional, um Japão-Irlanda em Osaka. A vida corria bem, mas ainda ninguém sabia que era gay, ninguém sabia que fora essa a razão a precipitar a tentativa de suicídio. «Escondi durante nove anos, mas era demasiado. Não estava a conseguir ser árbitro porque não era feliz com a pessoa que era», recordou.

 

Os pais foram os primeiros a saber. «Disse à minha mãe, depois ao meu pai. Dizer aquelas três palavrinhas ‘eu sou gay’ foi uma das coisas mais difíceis que alguma vez tive de fazer», lembrou. Contar ao patrão na Welsh Rugby Union foi o passo seguinte e um dos que mais preocupação gerou: «Tinha medo do que aconteceria se as pessoas nesse mundo descobrissem que era gay e as suas consequências.» Mas nada mudou. Finalmente, os amigos. «A maior parte telefonou de volta ou mandou uma mensagem, tirando um. A maior parte deles já desconfiava», referiu o árbitro, realçando a importância do momento. «É impossível tentar descrever o que senti. Foi fantástico perceber que não fez diferença nenhuma para a família, amigos e para as pessoas no râguebi. Foi como nascer novamente.»

 

O último passo

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A família sabia, os amigos sabiam, os responsáveis pela arbitragem sabiam. Só faltava o público. A revelação foi feita numa entrevista a um jornal galês, mas foi na televisão que Nigel Owens saiu do armário. Literalmente. O árbitro participava regularmente no programa de humor de Jonathan Davies e juntos tiveram a ideia de abordar o tema de forma implicitamente explícita.

 

Owens estava escondido dentro de um armário e abriu as portas ao som da música «I am what I am». «Não têm noção do que senti quando praticamente toda a gente se levantou e aplaudiu», exclamou o árbitro, que faz questão de se fazer acompanhar do sentido de humor apurado no râguebi. «Se o perdermos, se não tivermos a capacidade de nos rirmos de nós e dos outros, perdemos uma grande parte do jogo.»

 

A postura é uma imagem de marca e é reconhecida por adeptos e jogadores, desde as farpas ao futebol («Se vais continuar a mergulhar, volta daqui a duas semanas», atirou para o escocês Stuart Hogg durante um jogo no estádio do Newcastle) às brincadeiras com a sua homossexualidade. «Num jogo dos Ospreys, o Ryan Jones estava no balneário e disse-me para esperar que pudesse vestir alguma coisa. ‘Não faz diferença. De qualquer maneira, és muito feio’, respondi. Ele riu-se, eu ri-me, todos os outros jogadores se riram.»

 

A nomeação para a final do Mundial em 2015 foi o derradeiro feito na carreira que faltava a alguém que estava na terceira fase final e tinha arbitrado duas finais da Heineken Cup. «Quero agradecer aos meus amigos e família pelo apoio constante que me ajudou a ultrapassar momentos muito difíceis na minha vida. O meu pai esteve sempre ao meu lado e está felicíssimo com a notícia. É uma pena que a minha mãe não esteja cá para ver, uma vez que foi sempre um grande pilar na minha vida», relembrou Nigel Owens.

 

A filosofia com o apito vai continuar a fazer a diferença, dentro e fora de campo: «É impossível arbitrar um jogo de 80 minutos sem fazer pelo menos um erro, mas aprendemos com eles. Ao fazer isso, melhoramos e aceitamos o facto de que não há nada de errado em cometer erros na vida.»

RPS