Não há Jogos Olímpicos sem política
A frase mais emblemática de sempre associada a Marcelo Rebelo de Sousa pertence a Ricardo Araújo Pereira. «É proibido. Mas pode-se fazer», repetia, quase à exaustão, no sketch dos Gato Fedorento que ironizava com a posição do então comentador da RTP no programa «As Escolhas de Marcelo» com Maria Flor Pedroso.
O paradoxo era a punchline natural do sketch. Se alargamos o escopo aos Jogos Olímpicos, talvez haja uma frase que incorpore a mesma teoria. Não se deve misturar política com desporto. Há décadas que se ouve este tipo de frases e, sendo certo que acontecem com muito mais frequência em organismos como a UEFA e a FIFA, nunca foi verdadeiramente respeitada.
É possível ir ainda mais longe: não pode haver Jogos Olímpicos sem política. Mesmo que esse não tivesse sido o objetivo primário do barão Pierre de Coubertin, acontece praticamente desde o início. O francês também não queria profissionais a competir e hoje é o que é. O evento adaptou-se à realidade e a competição é hoje muito maior do que foi sonhada ainda no século XIX.
Um livro escrito sobre os Jogos Olímpicos em 2022 terá na política os seus capítulos mais sumarentos e interessantes. Feitos desportivos como os de Mark Spitz, Michael Phelps ou Usain Bolt são puros e inspiraram milhões um pouco por todo o mundo, mas foi a política que catapultou a importância dos Jogos Olímpicos.
O evento desportivo tem servido, de alguma forma, como um narrador participante da história mundial. Os Jogos de Hitler em 1936, o protesto no pódio de Tommie Smith e John Carlos, o ataque terrorista do Setembro Negro em Munique, ou os boicotes consecutivos aos Jogos de Moscovo em 1980 e de Los Angeles em 1984 são apenas alguns dos exemplos a partir dos quais podemos fazer evoluir a geopolítica mundial de década a década.
Se a criação de competições europeias de futebol durante a década de 50 foi vista como uma forma de aligeirar a tensão entre vizinhos e arranjar uma forma de haver um conflito mais saudável, os Jogos Olímpicos sempre foram o terreno mais fértil para essa declaração de intenções.
O duelo entre ocidente e oriente foi eterno. EUA e União Soviética não se limitaram a fazer uma corrida à bomba atómica e à lua. A supremacia ideológica através do desporto tornou-se uma obsessão por líderes políticos, sobretudo os autoritários, um pouco por todo o mundo.
O leste europeu, marcado pelo bloco comunista, fez mesmo dos Jogos Olímpicos a sua maior arma. A República Democrática da Alemanha teve sempre mais sucesso do que a vizinha federal. Países como Bulgária, Hungria e Roménia seguiram o exemplo da União Soviética e continuam a ser hoje, mais de 30 anos depois da queda do bloco soviético, dos países com maior tradição e títulos olímpicos.
Mesmo dentro do bloco de leste, houve duelos que marcaram os Jogos, sobretudo durante a década de 50, fosse no confronto sangrento entre a União Soviética e a Hungria no polo aquático ou no duelo entre Tito e Estaline com as seleções de futebol da Jugoslávia e da União Soviética a servirem como marionetas dos maiores interesses da nação.
É legítimo dizer que os Jogos Olímpicos aliviaram tensões, validaram reivindicações e diminuíram a probabilidade de os conflitos saírem do campo de jogo e entrarem no campo da batalha. Os Jogos Olímpicos sempre foram política, portanto. E a política sempre precisou dos Jogos Olímpicos. Os dois não conseguem viver um sem o outro e agora, em Pequim-2022, estamos no centro de mais um tufão que pode atingir proporções épicas.
Há três pequenas tempestades, controladas até ao momento, que podem contribuir para a perda de controlo rapidamente. O anfitrião foi alvo de inúmeros boicotes diplomáticos e a forma como tem lidado com o controlo dos casos positivos de coronavírus está a ser alvo de inúmeras queixas por parte dos atletas.
Mas há mais, muito mais. EUA e China estão em campos opostos e Eileen Gu foi arrastada para o epicentro do conflito devido à sua opção de representar o país asiático em vez de defender o país onde viveu e cresceu. A diferença é que há muitas formas de fazer política e, mais do que partir para o desafio direto, a jovem preferiu uma solução mais diplomata, sem hostilizar qualquer uma das nações e salientando a importância de servir de inspiração para uma enorme comunidade.
Por último, o doping. Numa fase em que EUA, Ucrânia e Rússia se encontram num triângulo amoroso onde praticamente não há amor, o país de Putin, obrigado a competir enquanto Comité Olímpico Russo, está novamente no epicentro da confusão.
O caos está lançado na patinagem artística devido à nova sensação feminina lançada por Eteri Tutberidze. Kamila Valieva tem 15 anos e é, de acordo com alguma imprensa especializada, a atleta que acusou positivo a uma substância proibida antes de Pequim. O episódio está apenas no início mas não há forma de fugir à extrema cautela com que a situação está a ser abordada.
Por Valieva ser menor. Por haver um regulamento muito próprio para casos deste género. E porque os casos que incluem atletas russos têm de ser resolvidos com atenção redobrada depois de quase uma década em que o país tem sido impedido de participar ou condicionado na participação.
É política. Não há como fugir. Nem mesmo no maior evento desportivo do mundo.