Moacyr Barbosa. O guarda-redes do Maracanazo
«A pena máxima criminal no Brasil é de 50 anos. Não sou um criminoso vulgar e já cumpri mais de dez anos além disso. Tenho o direito de dormir tranquilo.»
Moacyr Barbosa nunca conseguiu dormir tranquilo. A carreira devia falar por ele. Jogou no Vasco da Gama entre 1945 e 1955, venceu a Copa América em 1949, fez parte da seleção que atingiu a final da competição em 1953 e foi um dos quatro jogadores que alinharam em todos os seis encontros do Brasil no Mundial de 1950. Também conquistou o título carioca em 1945, 1947, 1949, 1950, 1952 e 1958 e em 1948 alcançou o título da competição que antecedeu a Taça dos Libertadores da América.
Mas, por mais invejável que fosse o seu currículo, teria aquele momento do Maracanã, a 11 minutos e 28 segundos do final do jogo, para sempre. «Ainda sou marcado, mais de 40 anos depois, pela Copa de 50. Ninguém tem mais o direito de me cobrar uma coisa ocorrida há tanto tempo», disse, não muito tempo antes de morrer em abril de 2000, de ataque cardíaco. Mas Barbosa caiu numa espiral da qual não se pode sair: tornou-se o jogador mais reconhecido da pior derrota que o Brasil sofreu na sua história.
O momento que estava preparado para ser a afirmação de um Brasil em recuperação no contexto mundial tornou-se numa humilhação. Era suposto ser a maior vitória do desde a independência, em 1822, mas tornou-se uma metáfora para as derrotas da própria sociedade brasileira.
Barbosa era um intocável para Flávio Costa. Tinha uma colocação impecável e uma grande técnica de jogo. Era desta forma que o jogador do Vasco da Gama de 29 anos era descrito pelo selecionador. E talvez tenha sido essa inteligência que o tramou no lance decisivo, pelo menos o mais emblemático, do último jogo do Mundial-1950.
O lance foi praticamente tirado a papel químico do golo do empate e começa com Ghiggia a fugir a Bigode pelo lado direito do ataque. Se aos 66 minutos, o ponta direita tinha assistido para o coração da área, para Schiaffino marcar; desta vez o guarda-redes estava determinado em impedir um desfecho idêntico.
«Pensei que o Ghiggia fosse cruzar, porque fazia sempre isso. Fiquei apavorado e saí da baliza para chamar a atenção do Juvenal e cortar o centro. Quando o Ghiggia percebeu, chutou para a baliza, entre o meu corpo e o poste esquerdo, mais por descargo de consciência, porque estava praticamente sem ângulo. Dei um salto de gato para trás e cheguei a tocar na bola. Um segundo depois, olhei para a baliza e vi as redes a balançar. Por um instante, pensei que ela estivesse do lado de fora. Ghiggia foi esperto. Tentou uma coisa impossível, que deu certo. Ele pensou errado e deu certo, eu pensei certo e deu errado», lamentou Barbosa.
O ponto de vista de Barbosa é mais ou menos partilhado pelos protagonistas. Flávio Costa disse que a antecipação foi uma «desgraça»: «Barbosa, como jogador inteligente, de grandes reflexos, adiantou-se, na posição de cortar a bola, pois esperava uma repetição do lance do primeiro golo uruguaio, quando Ghiggia deu um passe para trás».
E Ghiggia, como é que viveu o lance? «Barbosa já estava habituado aos cruzamentos e não se preocupou em fechar o ângulo. Senti que era a hora exata. Não pensei mais e chutei a bola com a direita. O remate saiu murcho e torto, em direção ao pequeno espaço entre Barbosa o poste. A bola levava efeito, e isso contribuiu também para que Barbosa não a pudesse controlar. Quando Barbosa se atirou, estava no contrapé e já era tarde», disse.
Nem toda a gente mostrou tanta compreensão. Era preciso encontrar um culpado para a derrota e Barbosa foi um alvo demasiado simples, como o são sempre os guarda-redes. O Estado de São Paulo deu voz ao descontentamento acentuado paulista, já desde a convocatória de Flávio Costa, e foi mordaz: «Se tivesse permanecido parado, onde se encontrava, a bola teria batido nele e voltado. Fez, porém, o inacreditável: numa bola atirada sem pretensões, de situação dificílima, atirou-se ao chão quando ela vinha de meia altura. E foi coberto vergonhosamente».
O escritor Nelson Rodrigues entende que «o golo de Ghiggia ficou gravado, na memória nacional, como um frango eterno». «O brasileiro já se esqueceu da febre amarela, da vacina obrigatória, da gripe espanhola, do assassinato de Pinheiro Machado. Mas o que ele não esquece, nem a tiro, é o chamado frango de Barbosa», continuou
Barbosa nunca esqueceu aquele momento. Nunca o deixaram esquecer. Não valia a pena insistir na tecla de que a derrota, como a vitória, tinha de ser dividida por todos. «Se não tivesse aprendido a não ficar incomodado quando as pessoas falavam do golo, provavelmente já estaria na prisão ou no cemitério», disse Barbosa antes de morrer. «As pessoas esquecem-se que os Mundiais de 1974 e 1978 foram humilhações piores. E que dizer do embaraçosa que foi a final em 1998? Mesmo assim as pessoas preferem falar de 1950».
O bode expiatório ignora que o contexto importa. O Brasil tinha parado para aquele Mundial, organizado em casa, construído do nada e com o objetivo, e a expectativa legítima, sobretudo depois das goleadas à Suécia (7-1) e Espanha (6-1), de alcançar o título. O bode expiatório ignora que o Maracanã tinha sido construído para aquele dia e havia cerca de 200 mil pessoas à espera de fazer a festa. Ou talvez não ignore, tenha apenas aprendido a esquecer.
«A cena da multidão derrotada é a que mais ficou gravada na memória de todos que presenciaram o jogo. Foi como se tivessem preparado uma festa para coroar um rei e o rei morresse antes da coroação», lamentou Barbosa, que confessou que ficou duas horas no balneário após a derrota e, nos dias seguintes, chegou a estar escondido num hotel.
Por aquela altura, Barbosa estava longe de imaginar que o futuro ia ser tão amargo para ele. Só voltou a jogar pela seleção uma vez, em 1953, durante a Copa América, e percebeu que se tinha tornado inesquecível para os adeptos. Durante os anos 70, num mercado, ouviu o pior comentário do pós-Maracanzo, quando uma mulher apontou para ele e disse ao rapaz que a acompanhava: «Olha para ele, filho. É o homem que fez todo o Brasil chorar».
A redenção nunca chegou. Ironicamente, trabalhou muitos anos no Maracanã e chegou a receber, como oferta, os postes de madeira da baliza de 1950. Resultado? Queimou-os assim que chegou a casa. A sua proximidade da seleção brasileira também foi vista como um mau presságio e em 1993 foi mesmo proibido de fazer comentários para a transmissão televisiva depois de Mário Zagallo ter alegado que trazia má sorte.
Má sorte teve Barbosa, até morrer. A mulher morreu em 1997, de cancro, e, sem filhos, só conseguiu viver com dignidade graças ao apoio do Vasco da Gama, que lhe ofereceu uma quantia mensal para pagar a renda da casa. A capacidade para ser feliz de Barbosa morreu naquele 16 de julho de 1950. A ilusão nasceu num dia como o de hoje, 27 de março, há 100 anos. Seria essa a idade que celebraria se ainda fosse vivo. E, muito possivelmente, mesmo apesar do 7-1 de 2014, continuaria a ser visto como o culpado de 1950. O golo de Ghiggia garantiu-lhe pena perpétua.