Milagre no Gelo. A medalha em jogo era outra
Num dos períodos mais quentes da Guerra Fria, os amadores do hóquei no gelo dos Estados Unidos surpreenderam o mundo e derrotaram a superfavorita União Soviética na última fase dos Jogos Olímpicos de Lake Placid-1980. O simbolismo do feito extravasou a proeza do rinque.
Guerra Fria aquece no desporto
A crise dos mísseis de Cuba foi em 1962, durante uma década em que a conquista espacial tinha honras de manchete nas primeiras páginas dos jornais nos Estados Unidos e na União Soviética. Os anos foram passando e, como a tensão arterial, também a tensão política foi subindo e descendo.
Até 1979, altura em que os soviéticos invadiram o Afeganistão. Jimmy Carter tinha assumido a presidência norte-americana em 1977 mas a eventual falta de experiência não fez com que os Estados Unidos deixassem passar esta agressão em claro.
O desporto, como em tantas outras ocasiões na história, alcançou o centro do palco. A 20 de janeiro de 1980, em vésperas dos Jogos Olímpicos de Inverno de Lake Placid (Nova Iorque), o presidente lançou um ultimato a Brezhnev: ou recuava na invasão no espaço de um mês ou os Estados Unidos não participariam nos Jogos Olímpicos de Verão desse ano, marcados para Moscovo.
Lake Placid-1980
A ameaça de Jimmy Carter teve poucas repercussões efetivas nos Jogos Olímpicos de Lake Placid, que começaram a 14 de fevereiro. O silêncio soviético na resposta ao ultimato não deixou grandes marcas e a comitiva da URSS, com 86 atletas, foi a segunda maior no evento (apenas superada pelos 101 dos Estados Unidos).
O medalheiro deu uma vantagem clara à União Soviética nos títulos olímpicos: dez em 38 possíveis e o primeiro lugar nesta contabilidade, apesar de ter ficado a uma das 23 medalhas totais da República Democrática da Alemanha.
Os números não contam a história toda. Não contam que um dos seis títulos olímpicos dos Estados Unidos foi o mais marcante de todo o evento e que continua a ser, ainda hoje, 38 anos depois, um dos momentos mais marcantes da história olímpica e… da própria Guerra Fria.
No hóquei do gelo, a 22 de fevereiro de 1980, num jogo a contar para a última ronda do torneio, os Estados Unidos surpreenderam o mundo e conseguiram aquilo que passou a ser conhecido por Milagre no Gelo.
Amadores contra profissionais mascarados
Os Jogos Olímpicos foram criados, na sua essência, para amadores. Era essa a filosofia que estava na base da ideia levada da teoria à prática por Pierre de Coubertin. Mas, com o passar dos anos, a profissionalização dos desportos fez com que se tornasse impossível a ausência de especialistas no evento.
O hóquei no gelo só se rendeu em 1988. Até lá, os profissionais continuaram a não ser autorizados a competir. Ou seja, qualquer jogador norte-americano ou canadiano que jogasse na NHL estava obrigatoriamente fora de ação.
A União Soviética encontrou uma forma de contornar os regulamentos. Apesar de os seus internacionais disputarem uma liga competitiva e serem muito mais experientes do que os rivais, faziam parte de várias empresas do estado, de onde recebiam o seu verdadeiro ordenado. Por isso, conseguiram somar títulos mundiais e olímpicos consecutivos na modalidade.
Os Estados Unidos não replicavam essa artimanha. Campeões olímpicos em 1960 pela primeira vez na história, os norte-americanos raramente estavam na luta entre os melhores. Mas 20 anos depois, a jogar em casa e com o apoio do público, a hipótese de disputar uma medalha era grande.
Herb Brooks, jogador que ficou de fora por uma unha negra na edição de 1960, era o selecionador norte-americano e lançou um intenso programa de recrutamento para definir a equipa que jogaria em Lake Placid. No total, 68 jogadores apareceram para as captações nas quais, além de demonstrar as capacidades no gelo, tinham ainda responder a um teste psicotécnico de 300 perguntas.
O objetivo era simples: Herb queria saber exatamente com o que contar em prova: não apenas as dinâmicas desportivas mas as sociais. Como um dos jogadores, John Harrington, disse, Herb Brooks queria saber os limites de cada jogador, para retirar dele o máximo possível antes que este quebrasse. «Puxava por ti até ao limite, onde sabia que ias dizer que estavas farto daquilo, e depois recuava», contou.
Derrota moral
A União Soviética era a maior potência olímpica no hóquei no gelo. Tinha sido campeã em quatro edições consecutivas (1964, 1968, 1972 e 1976) e aparecia nos Estados Unidos como grande dominadora. A comprová-lo estava o encontro de exibição que fizeram com os americanos no Madison Square Garden, em Nova Iorque, apenas duas semanas antes da cerimónia de abertura.
O resultado: um pesado 3-10. «Demorámos muito a entrar no jogo. Estávamos a vê-los jogar e quando começámos finalmente a fazer alguma coisa, quando sentimos que merecíamos estar no mesmo rinque que eles, já perdíamos por oito», contou John Harrington.
A diferença de poder era abismal, não apenas para os Estados Unidos mas para todos os rivais. Tanto que um jornalista do The New York Times chegou mesmo a escrever que se o gelo não derretesse e não houvesse nenhum tipo de milagre, os soviéticos iriam ganhar a medalha de ouro com relativa facilidade.
Fase de grupos e luta pelas medalhas
A primeira ronda ajudou a separar o trigo do joio. De um lado, os Estados Unidos somaram quatro vitórias e um empate, com a Suécia, conseguindo um total de 25 golos marcados e dez sofridos e garantindo o apuramento para a última ronda juntamente com os escandinavos.
Do outro lado, os soviéticos iam esmagando os adversários: 16-0 ao Japão, 17-4 à Holanda, 8-1 à Polónia, 4-2 à Finlândia e 6-4 ao Canadá, num total de 51 golos marcados e onze sofridos. Feitas as contas, partiam como líderes para o ataque às medalhas, frente à oposição de Estados Unidos, Suécia e Finlândia.
Os resultados entre os apurados na primeira fase eram contabilizados no acesso às medalhas, pelo que cada seleção iria fazer apenas dois jogos. Logo a abrir, o tal Estados Unidos-União Soviética, a 22 de fevereiro.
Com a memória do jogo do Madison Square Garden ainda muito viva, os soviéticos julgaram que tinham um jogo no bolso. «Julgavam que estava ganho. Aquele resultado [10-3] foi o início do descalabro», disse mais tarde o selecionador Viktor Tikhonov.
Num pavilhão com 8500 espetadores, na sua enorme maioria norte-americanos, os soviéticos pareceram querer fazer mais do mesmo. Por três vezes adiantaram-se no marcador: por três vezes os norte-americanos responderam e igualaram o resultado.
Quando faltavam dez minutos para o final do terceiro e último período, Mike Eruzione lançou a última peça para a surpresa e marcou o 4-3. Assim, de forma inesperada, os Estados Unidos estavam na frente e os soviéticos pareciam incrédulos, a perder o controlo e a jogar como não estavam habituados: a perder e precipitados.
Eis o milagre
Os minutos passaram e o choque começou a ganhar contornos cada vez mais definitivos. Na ABC, Al Michaels narrou de forma perfeita o final do encontro: «Onze segundos, dez segundos… a contagem decrescente está em andamento. Morrow passa para Silk. Faltam cinco segundos para o final do jogo. Acreditam em milagres? [Pausa] SIM!».
A festa americana estendeu-se ao país mas, apesar das celebrações, o jogo não garantiu qualquer medalha. Foi necessário derrotar a Finlândia dois dias depois, num jogo em que os americanos entraram no terceiro período a perder [viraram de 1-2 para 4-2].
O ouro foi a cereja no topo do bolo. Hoje, 38 anos depois, aquele continua a ser o último título olímpico dos Estados Unidos no hóquei no gelo masculino – a equipa feminina venceu na edição de estreia, em 1998. E mesmo a nível de medalhas, os americanos só regressaram em 2002, com uma medalha de prata.
Do outro lado, a União Soviética desforrou-se com vitórias em 1984 e 1988, enquanto o título de 1992 foi para a Equipa Unificada, composta pelas antigas repúblicas soviéticas socialistas.
Praticamente um mês depois do Milagre no Gelo, Jimmy Carter cumpriu a ameaça e anunciou que os Estados Unidos não disputariam os Jogos de Moscovo. Em resposta, os soviéticos não competiram em Los Angeles-1984.
RPS