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É Desporto

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21 de Maio, 2018

Milagre de Berna. Um duelo com potências em trajetórias opostas

Rui Pedro Silva

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A Hungria era a melhor equipa europeia, estava há cinco anos sem perder e tinha estrelas como Puskas e Kocsis. Mas a RFA tinha o orgulho em jogo e conseguiu virar uma desvantagem de dois golos para ser campeã pela primeira vez. Para uns, foi o início de um sentimento de orgulho recuperado após a guerra, para outros um passo importante rumo à revolução de 1956.

 

Importância da contextualização

 

De um lado, a Alemanha (RFA). Do outro, a Hungria. A final do Mundial-1954, analisada a quente e com os olhos do século XXI, pode proporcionais ideias enganadoras. É preciso lembrar que estamos a falar de uma época em que Gary Lineker ainda não tinha nascido e, como tal, o futebol ainda não era uma modalidade em que jogavam onze contra onze e no final ganhavam sempre os mesmos.

 

Aliás, se os alemães faziam alguma coisa era perder. Tinham perdido a guerra em 1918, novamente em 1945 e, mesmo no campo do futebol, o cenário não era muito favorável: ausentes em 1930 e 1950, derrota nas meias-finais em 1934 e eliminação na primeira ronda em 1938, numa equipa que tinha nove austríacos entre os 22 convocados.

 

A Alemanha estava longe de ser o que é hoje. Na Suíça, jogava-se o orgulho. Apesar da separação da separação entre a RFA e a RDA, transpirava a noção de que a seleção precisava de união, de algo que fizesse devolver um conceito de país, de valores passíveis de ser representados sem vergonha e com vaidade. O Mundial era a oportunidade perfeita.

 

Os alemães eram outsiders. Não necessariamente num campo global, como hoje se vê a Islândia, mas quando comparado com a nata do futebol. É aqui que entre a magia húngara. A equipa maravilha, orientada pelo ministro dos Desportos (Guzstav Sebes), não olhava a rodeios no momento de atropelar qualquer adversário que lhe aparecesse à frente.

 

A Hungria estava imbatível há cinco anos e pelo meio tinha envergonhado a Inglaterra, o então campeão moral do futebol, duas vezes. Uma em Wembley, por 6-3, em 1953, e outra em Budapeste, por 7-1, nas vésperas da fase final.

 

A Hungria era o que a Alemanha é hoje. Uma superpotência do futebol, intimidante no relvado e deslumbrante no estilo de jogo (bom, aqui a comparação germânica não faça tanto sentido), com Puskas, Kocsis, Hidegkuti e Czibor em plano de destaque.

 

Prequela pouco animadora

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RFA e Hungria defrontaram-se na fase de grupos e os magiares não deram hipótese, goleando por 8-3. Kocsis brilhou com quatro golos mas a grande figura foi Puskas. O futuro jogador do Real Madrid só marcou um golo mas foi a notícia do encontro ao sair lesionado, depois de uma entrada mais dura de Werner Liebrich.

 

O jogo não foi grande indicador. Sim, a Hungria goleou mas o selecionador alemão Sepp Herberger, que já tinha orientado a Alemanha Nazi na fase final de 1938, decidiu inovar e jogar com vários elementos fora das suas posições naturais com o objetivo de poupar esforços, tendo em conta um futuro jogo decisivo com a Turquia.

 

A atitude arrojada surtiu efeito. Os dois avançaram para as rondas a eliminar e galgaram fases até atingir a final de Berna: de um lado, os alemães bateram a Jugoslávia e a Áustria, do outro os húngaros deixaram pelo caminho o Brasil e o Uruguai, campeão do mundo em título.

 

A desforra, no maior palco possível, com 62500 adeptos no Wankdorf Stadium em Berna, estava marcada para 4 de julho.

 

Mais do mesmo… ou não

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O jogo marcou o regresso à competição de Puskas e os primeiros minutos pareceram garantir que estávamos a encaminharmo-nos para mais do mesmo, à imagem da fase de grupos. Puskas inaugurou o marcador aos seis minutos, Czibor dilatou a vantagem dois minutos depois e os húngaros começaram a esfregar as mãos de contentamento.

 

Os alemães reagiram e tornaram a final ainda mais espetacular, marcando por Morlock aos 10’ e Rahn aos 18’. Subitamente, com quatro golos num final em menos de vinte minutos, alemães e húngaros aperceberam-se de que a história poderia ser muito diferente. E não havia vencedores antecipados.

 

Puskas mostrou não estar na plenitude das suas capacidades e a Hungria ressentiu-se disso, tal como da forte chuva que se fez sentir. Os alemães, dotados de chuteiras mais modernas, fornecidas pela Adidas, conseguiram ganhar uma vantagem natural e pareceram mais… peixes na água.

 

Quando Rahn bisou a seis minutos do fim, os contornos do milagre de Berna ficaram finalmente visíveis a todos. Sim, a equipa-maravilha da Hungria era vulnerável e estava prestes a sair derrotada no momento mais importante da sua história.

 

As raízes da revolução

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Se as humilhações impostas à Inglaterra tinham servido como propaganda do regime, um motivo para sair para a rua e celebrar a superioridade desportiva (e não só), também a derrota foi vista como uma arma de propaganda política.

 

Impulsionados pelo relato dramático da rádio, os húngaros saíram à rua para protestar. Com o resultado, sim, com a arbitragem, com a desilusão e com os lances menos felizes de Gyula Grosics, mas também, na opinião do guarda-redes, com o próprio regime.

 

Para ele, aqueles protestos lançaram definitivamente as sementes para a revolução húngara de 1956. Foi apenas mais um momento em que o povo sentiu que unido poderia fazer a diferença sem se limitar a obedecer a ordens com medo do que poderia acontecer.

 

Curiosamente, 1956 foi também o ano em que a equipa-maravilha acabou em definitivo. Depois de 42 vitórias, sete empates e uma derrota a arrancar a década de 50, que contemplaram ainda o título olímpico em 1952, a caminhada chegou ao fim de forma abrupta.

 

A geração do Mundial-1958 era já uma miragem da que tinha atingido a final em 1954 e nunca mais o futebol húngaro conseguiu fascinar o mundo da mesma forma.