Michèle Mouton. Uma mulher que abriu o caminho… a acelerar
Adorava conduzir mas nunca pensou em competir até ao dia em que, por acaso, um amigo lhe pediu ajuda. Foi co-piloto durante algum tempo mas a ausência de resultados – e de condições do carro – levou a que o pai lhe fizesse um ultimato. Mouton passou para o volante e o resto é história, com quatro vitórias em etapas do WRC e um segundo lugar na classificação geral em 1982.
Uma paixão genuína
Michèle Mouton tem a vida ligada aos ralis por acaso. Quando era jovem, a crescer no sul de França, praticamente em cima de um troço do Rali Monte Carlo, não imaginava que um dia pudesse vir a ser piloto.
Não estava interessada na competição. De facto, até muito tarde nem sequer soube que esta existia. Para ela, pegar num carro e seguir à máxima velocidade pelas curvas e contracurvas do trajeto era uma paixão genuína, sem interesse escondido. Fazia-o porque gostava. Porque gostava da adrenalina. Porque tinha amor pela condução.
Os pais, dedicados à jardinagem, sempre souberam que Michèle tinha jeito em tudo o que fazia. Começou por ser o ballet, depois o esqui. Mas o jeito para a condução começou por ser escondido, uma vez que a adolescente de 14 anos pegava nas chaves do Citroën dois cavalos do pai para se fazer à estrada sem dizer nada a ninguém.
Anos mais tarde, estava a estudar Direito e arranjou um trabalho em Grenoble. Continuava indiferente às grandes provas automóveis, mas fazia os seus próprios ralis, nos trajetos diários que fazia para o trabalho. «Desta vez demorei quatro horas. Da próxima tenho de ver se consigo diminuir pelo menos dez minutos», pensava.
E assim continuou até que um dia um amigo que competia nos ralis lhe perguntou se queria ir com ela assistir aos treinos do Rali da Córsega. Palavra puxa palavra, conversa segue conversa, Michèle acabou a fazer de co-piloto. Só havia um problema: o talento na condução do amigo só tinha uma mais-valia; mais valia deixar o volante para Mouton.
O pai apercebeu-se disso e, furioso com as condições do carro, apresentou um ultimato à filha: ou levavam aquilo a sério e começavam por comprar uns pneus novos para substituir os carecas ou Michèle deixava o amigo para tentar seguir uma carreira como condutora. Com um pormenor: o pai financiava-lhe a primeira temporada mas se os resultados não aparecessem teria de deixar as corridas e arranjar um emprego.
A base de uma carreira memorável
O ultimato do pai foi o melhor que podia ter acontecido a Michèle. Foi como se lhe dessem a escolher entre comer todos os dias ou passar à fome. A francesa era uma predestinada e, agora como piloto, os bons resultados seguiram-se uns atrás dos outros, com títulos femininos nacionais e europeus.
Mas não era suficiente. Michèle Mouton não era apenas a melhor mulher ao volante de um carro. Michèle tinha capacidade para se bater com os melhores do mundo e pouco interessava se tinha uma maçã-de-adão no pescoço ou não.
A estreia no WRC aconteceu em 1974 ao volante de um Renault Alpine. Sem o apoio de uma equipa profissional, nunca conseguiu atingir grandes resultados, mas exibiu fogachos de talento que não escaparam à atenção das grandes construtoras. Até 1980, não conseguiu mais do que quintos lugares. Depois, surgiu um telefonema que lhe mudou – novamente – a vida. Era a Audi a ligar com o convite para representar a equipa na temporada seguinte.
«Quando se é uma mulher francesa a competir nos ralis e te ligam da Alemanha a perguntar se queres fazer o Mundial por eles… não consegues acreditar», recordou em tempos numa entrevista. A oportunidade era única mas Michèle vacilou. Até então corria em equipas familiares, com liberdade para fazer tudo o que queria, mas sem o mesmo conforto e condições que uma equipa profissional lhe podia dar.
«Tinha de decidir entre os amigos e um caminho profissional. Foi muito, muito difícil para mim. Se queria progredir, esta era a única possibilidade», disse, garantindo depois que aceitar a Audi foi o melhor que podia ter feito: «É claro que não tenho remorsos».
Aposta recompensada
A Audi sentiu o mesmo que o pai de Michèle sentiu anos antes quando decidiu apostar na filha. Na época de estreia com o Audi Quattro, a francesa fez história e tornou-se a primeira mulher a vencer uma prova do WRC – Sanremo-1981. Mas não se ficou por aí e elevou a fasquia para a segunda temporada.
Com mais três vitórias – uma delas em Portugal -, Mouton disputou o título até à penúltima corrida, na Costa do Marfim, numa prova marcada pela emoção, uma vez que o pai tinha morrido nessa semana.
Com 18 minutos de avanço à entrada para o último troço, Michèle Mouton tinha a prova na mão e a garantia de ameaça à liderança do alemão Walter Röhrl, com quem tinha trocado palavras mais acesas durante a temporada - mas não estava destinado.
Depois de muitas dificuldades para conseguir finalmente pôr o carro em andamento, o Audi de Michèle Mouton e de Fabrizia Ponz – a sua co-piloto inseparável – despistou-se no meio do nevoeiro às quatro da manhã.
Mesmo no topo da sua carreira, a francesa nunca esqueceu as suas origens e o que mais prazer lhe dava: «Continuo sempre a sentir que é a primeira vez que conduzo um carro. Conduzo sempre com o coração, não consigo ser calculista. Talvez um dia tenha de o fazer por motivos profissionais, mas enquanto a Audi não me disser nada, continuarei a ser assim».
Michèle continuou a ser genuína. Pouco se importava com os resultados – o objetivo não era vencer homens mas sim competir e mostrar que conseguia ser a melhor – ou com as acusações de carros ilegais que ouviu no início da carreira. «Os homens têm de arranjar sempre uma desculpa, por isso dizem que tenho mais potência do que eles.»
A francesa limitava-se a fazer aquilo que sempre acreditou que o pai quereria e que nunca teve a oportunidade: «Ele adorava conduzir, e carros rápidos. Acho que teria adorado fazer o que fiz. Foi prisioneiro de guerra durante cinco anos e quando voltou não teve a oportunidade de competir. Mas ia sempre aos meus ralis».