Marieke Vervoort. Um testemunho inacreditável um ano depois
Belga foi uma das grandes figuras dos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro. Em pista, venceu uma medalha de ouro e uma medalha de bronze. Fora dela, foi notícia de relevo por já ter toda a documentação para a eutanásia recolhida. Um ano depois, Marieke continua viva mas às vezes falta-lhe a coragem…
Um soco no estômago
Marieke Vervoort não ia morrer depois dos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro. Foi a expressão mais utilizada pela imprensa nacional e internacional durante o verão de 2016, mas o que estava em causa nunca foi isso. Marieke Vervoort podia morrer, assim decidisse. Era esse o seu grande alívio: perante dores insuportáveis, a atleta com uma doença degenerativa podia avançar finalmente com a decisão, uma vez que a documentação está tratada desde 2008.
Um ano depois dos Jogos, Marieke ainda não morreu. E a jornalista Eleanor Oldroyd, da BBC, foi reencontrá-la na Bélgica para uma curta conversa sobre como têm sido estes últimos meses. O que se segue é a transcrição (parcial e em tradução livre) do primeiro capítulo do episódio do podcast «5 live Sport Specials» divulgado a 7 de setembro.
…
Olha para ti, estás com bom aspeto.
Sim, hoje sinto-me mesmo bem mas ontem nem por isso.
Já não te vejo desde novembro. Como é que tens estado?
Às vezes, ando bem mas também tenho dias em que fico mesmo muito triste e muito assustada. Porque está a piorar cada vez mais e está mesmo a assustar-me. Sinto que, bocado a bocado, estão a tirar-me tudo. A minha vista também está a piorar. As pessoas acenam-me e eu aceno de volta, mas não consigo ver quem é. Por exemplo, não consigo ver a tua cara agora. Sei que estás sentada aí mas não consigo ver a tua cara. É muito difícil…
É que… hoje pareces muito bem.
Sim…
Estás com bom aspeto, pareces bem. Quantos dias bons e dias maus é que tens?
Tenho quatro bons dias numa semana. Esta noite foi a primeira em muito tempo em que dormi muito, muito bem. Mas não consigo virar-me na cama, por isso é muito doloroso quando acordo. Dói-me tudo. De um minuto para o outro, pode mudar radicalmente. Por exemplo, esta manhã acordei com muitas dores e uns minutos depois estava em coma. A assistente que me acompanha durante a noite para estar de olho em mim, porque às vezes deixo de respirar e tenho ataques epiléticos. É muito assustador quando deixo de conseguir respirar. Agora tenho algumas dores mas sinto-me bem e tenho mesmo de aproveitar estes dias. Mas estes dias são cada vez menos. Estou mesmo assustada.
O que é que pensares tanto sobre a tua morte te ensinou sobre a vida?
Apenas a aproveitar mais cada momento. Cada bom momento é uma prenda. Aprendi, depois de todos os acidentes, depois de todas as más coisas que te aconteceram, que ficas mentalmente mais forte. Mas tens de perceber isso, tens de o fazer e de lutar para regressar. Tudo o que me acontece é mesmo muito mau e o futuro não está com bom aspeto mas sinto-me alguém muito rico. Se vires, quantas pessoas, quantos verdadeiros amigos tenho? Não apenas nos bons momentos, mas especialmente nos maus momentos. Sou uma pessoa muito rica. O dinheiro não significa nada para mim, mas um abraço faz de mim a pessoa mais rica no mundo.
As pessoas que ouvem isso perguntarão então por que é que queres ir embora [morrer]?
Quero qualidade na vida. Se estiver mal, e tenho mais maus dias do que bons, especialmente quando o inverno chegar. Quando os dias ficarem mais frios e húmidos, durmo só meia hora. Passado um bocado, habituas-te. Hoje percebo que já não fico tão cansada. Às vezes só adormeço depois das três e meia. E tenho cada vez mais dias em que planeio fazer coisas com os meus amigos e depois não consigo ir. E isso é muito triste. Esses dias são cada vez mais. Sinto muito a falta disso, quero voltar a ser jovem.
Como é que achas que vai ser… morrer?
É muito estranho dizê-lo agora, mas eu adoro quando tenho operações. A cada seis meses, preciso de um tratamento especial e têm de me pôr a dormir. E eu adoro essa sensação. E acho que isso me dará a mesma sensação. Vou adormecer, só não vou voltar a acordar. Todas as vezes, depois das operações, é sempre o mesmo: «Merda! Voltei outra vez!» É tudo a regressar, a dor e todas as coisas más.
Já tens uma ideia definida sobre o que vai ser preciso para pegares no telefone, ligares aos teus médicos e dizer que já chega, que tiveste o suficiente?
Já o disse algumas vezes [silêncio] Já lhes disse que estava demasiado difícil, que não conseguia viver mais daquela maneira. Foi por isso que me levaram para uma clínica especializada na dor. Dei a esta médica uma última hipótese de tornar a minha vida aceitável, porque da forma como vai, está cada vez pior. Não consigo aguentar. Se não consegues dormir, se estás com dores dia e noite, se te encontram no chão horas depois. Não é normal. Não, eu não quero viver assim. É demasiado.
Disseste-lhe então que estava na hora?
Sim, eu já lhe disse que queria morrer em setembro. Que era o suficiente para mim. Mas depois ele veio com a médica especial para a dor e eu disse que está bem, que vou dar uma chance, mas que se não estiver a resultar, desisto. Não consigo viver mais desta forma.
Nem todas as pessoas têm a oportunidade de escrever o próprio obituário. O que gostarias que as pessoas dissessem sobre ti depois de morreres?
Que… eu ouço muitas vezes que inspiro outras pessoas. Espero que as pessoas possam ter uma outra visão sobre a eutanásia, que não a vejam como um homicídio, que a vejam como algo que também pode ser bom.