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É Desporto

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26 de Março, 2018

Lew Alcindor. O pragmatismo de quem queria ser Kareem Abdul-Jabbar

Rui Pedro Silva

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A carreira universitária em UCLA foi demolidora. Venceu três títulos consecutivos, bateu recordes e até obrigou a NCAA a banir o afundanço. Mas fora do campo não conseguia entender a ignorância dos jovens de Los Angeles e sentia-se deslocado. Voltar a Nova Iorque era sempre uma lufada de ar fresco e por momentos chegou a pensar em abandonar UCLA para se transferir para Michigan. 

 

O adeus a uma perfeição tormentosa

 

Quando Lew Alcindor marcou 37 pontos e fez 20 ressaltos na final do torneio universitário de basquetebol, colocou um ponto final à carreira mais brilhante que um jogador teve antes de chegar à NBA. Desde que saiu de Nova Iorque para cruzar o país e representar os UCLA Bruins em Los Angeles, Alcindor conquistou três campeonatos, foi jogador do ano em 1967 e em 1969, fez parte da equipa do ano em 1967, 1968 e 1969 e foi o melhor jogador do torneio final nos mesmos três anos.

 

O impacto de Alcindor, hoje conhecido por Kareem Abdul-Jabbar, foi tão grande que a NCAA se sentiu obrigada a banir o afundanço dos jogos, apenas para atenuar a supremacia que o poste tinha durante os jogos. No balanço final, o jogador perdeu apenas duas vezes em 90 jogos e entrou na NBA como primeira escolha do draft (Milwaukee Bucks).

 

As médias? Demolidoras. Começou por registar 29 pontos e 15,5 ressaltos em 1967, evoluindo para 26,2 pontos e 16,5 ressaltos em 1968 e 24 pontos e 14,7 ressaltos em 1969. Quando os adversários o defrontavam era um pesadelo. Afastá-lo da manobra ofensiva era a principal prioridade mas uma tarefa hercúlea.

 

Perfeito, certo? Lew Alcindor tende a discordar. O rapaz que cresceu num dos bairros mais problemáticos de Nova Iorque, no Harlem, em plena era de tensão social, julgou que a mudança de ares para a Califórnia ia ser uma lufada de ar fresco. Estava enganado.

 

«Não estava satisfeito por abandonar os meus pais e o meu velho bairro mas tinha de reconhecer o preconceito que havia em Nova Iorque e de que havia um quase permanente motim no Harlem que em tempos amei. Julguei que talvez fosse melhor deixar aquilo tudo e ir para a Califórnia, onde as pessoas eram “daltónicas” e um homem podia viver a sua vida sem ter de passar por referências à sua cor ou raça», escreveu para a Sports Illustrated em 1969.

 

Cair numa realidade tenebrosa

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Lew Alcindor era a vedeta do país a nível do ensino secundário e a Associated Press considerava-o «a estrela mais desejada do país». As universidades fizeram fila para tentar o recrutamento mas as opções acabaram por estreitar até haver apenas duas: UCLA e Michigan.

 

Michigan foi uma hipótese muito forte. Lew Alcindor gostou da visita, do enquadramento que a universidade tinha na natureza, da diversidade cultural entre os estudantes e da presença de um amigo de infância a fazer atletismo. Mas, no final, a opção recaiu em UCLA. O sonho de viver livremente falou mais alto.

 

Arrependeu-se. «Descobri rapidamente que não havia o conceito de californianos, que as pessoas que viviam lá não eram mais do que gente que vinha de regiões do país onde o racismo abundava e que partilhavam as visões dos seus amigos lá da terra. Para eles, eu não passava de mais um preto de merda», disse.

 

A experiência universitária tornou-se rapidamente um calvário. Por um lado, em campo, não dava hipóteses. Mesmo não podendo jogar na primeira temporada após o recrutamento, por culpa das regras da NCAA, mostrou logo ao que ia quando no primeiro jogo liderou a equipa de recrutas a vencer a equipa que ia realmente competir e que se tinha sagrado campeã apenas uns meses antes.

 

Por outro, fora de campo, não se conseguia integrar. Sentia que os estudantes de UCLA «eram um bando de meninos privilegiados e infantis». No Harlem, tinha acordado para uma realidade de sofrimento, mas aqueles universitários de 20 e 21 anos pareciam «ignorar por completo o que os rodeava e que havia gente a passar à fome nos subúrbios de Los Angeles».

 

«Não sabiam porque não queriam saber. Eram juvenis, crianças, bebés, e agiam como tal. Não me podia dar com gente como essa, e como eles também não morriam de amores por mim, fiquei principalmente com os meus irmãos afro-americanos», disse.

 

Desafio sem motivação

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A supremacia dentro de campo cansou-o rapidamente. «Não andava a aprender nada em campo, era tudo demasiado fácil. Uma vez vencemos uma equipa por 103 pontos», contou.

 

A situação tornou-se tão insuportável que pensou pedir a transferência para Michigan. Mas, tal como um colega, repensou a situação e enquadrou o seu presente como se fosse um simples trabalhador. Era preciso aguentar, perceber que a maior parte das pessoas pode não gostar dos seus empregos mas continuam a desempenhá-los para sobreviverem.

 

A ausência de motivações exteriores fez com que Alcindor se centrasse cada vez mais em si próprio. Descobriu a vida de Malcolm X e interessou-se pelas ideias que apregoava. Por essa altura, deixou de dormir na faculdade: «Já não os suportava». Por breves semanas, chegou a sair com uma rapariga branca mas a constante pressão das amigas sobre a excentricidade de uma relação interracial fez com que Alcindor sentisse que não valia a pena manter o relacionamento e fazê-la passar pelo constante julgamento.

 

O interesse por novas formas de estar na vida e novas filosofias fez com que se convertesse ao Islão em 1968, abrindo caminho para ser conhecido por Kareem Abdul-Jabbar. «Muitos ficaram furiosos depois de saber da minha decisão. Os jornalistas escreveram coisas muito feias, os fãs enviaram cartas furiosas e algumas pessoas ameaçaram matar-me. Os meus pais ficaram chocados e magoados por ter rejeitado o nome que me tinham dado. Os meus colegas de equipa ficaram confusos, alguns sentiram-se pessoalmente traídos. Apesar de tudo isso, sabia que tinha tomado a decisão certa, porque era, passados aqueles anos todos, finalmente quem queria ser.» 

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A despedida em 1969 fechou com a chave de ouro uma carreira brilhante mas abriu também as portas para um novo mundo. As únicas duas derrotas que sofreu tiveram particularidades muito especiais: estava ainda a recuperar de uma lesão na córnea (a que o fez começou a usar os óculos pelos quais ficou reconhecido) no desaire por dois pontos contra Houston em 1968 e não conseguiu contornar o antijogo de USC na última partida da fase regular de 1969, em que os Trojans aproveitaram o facto de não haver ainda tempo limite de ataque para espremer ao máximo o tempo de jogo e… ganhar por 46-44.

 

O último jogo trouxe mais um título e um momento especial: o pai, que era polícia sinaleiro em Nova Iorque, foi convidado para integrar a banda de UCLA na bancada. Ele que, quando era mais jovem, tinha estudado trombone na conceituada Juilliard School of Music.

 

Aquele era o adeus definitivo a UCLA e a Los Angeles, julgava ele. Mas depois de seis épocas em Milwaukee, voltou a rumar à Califórnia para jogar pelos Lakers. Aí, contudo, a sociedade já era bastante diferente e Abdul-Jabbar estava preparado para deixar a sua pegada única na modalidade, com mais cinco títulos a juntar ao que tinha vencido no Wisconsin.