Kohei Uchimura. Desenhar foi o caminho para a perfeição
É a figura incontornável da ginástica masculina. Distraiu-se ao ponto de ter de pagar 4372 euros por estar a jogar Pokémon Go com dados móveis mas em prova ninguém o bate desde 2008. Avesso a ser tocado por outros, desenhava numa folha os movimentos antes de os repetir até atingir a perfeição. O japonês entra hoje em ação.
Uma figura que marca o desporto
«É raro um atleta conseguir definir uma modalidade a este ponto, mas esse é o caso de Kohei Uchimura. A sua elegância, a beleza dos seus movimentos e a pureza da sua técnica roçam a perfeição». O começo de conversa de Nadia Comaneci, a ginasta mais famosa do mundo, diz tudo sobre a importância do japonês de 27 anos.
A romena, campeã olímpica em 1976, não se fica por aqui: «Quando ganhei em Montreal, era demasiado nova para perceber o que tinha acabado de acontecer, mas ele continua a evoluir e a ganhar graças a esta obsessão».
Mas o que tem Uchimura de especial que faz dele uma das figuras obrigatórias dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro? Tudo. No final de 2015, conquistou o sexto título mundial consecutivo do concurso completo (saltos de cavalo, solo, cavalo com arções, argolas, paralelas e barra fixa), em Glasgow.
Na altura, Comaneci rendeu-se ao nipónico. «Quando se veem os ginastas em movimento lento, o resultado não costuma ser bom porque se percebem as pequenas falhas e erros. Mas com Uchimura isso não acontece, tudo é perfeito», explica.
Simone Biles nasceu em 1997 e é a grande figura da ginástica artística feminina. Os especialistas dizem que é como Kohei Uchimura, mas a norte-americana de 19 anos não aceita a comparação. «Toda a gente diz que sou uma extraterrestre ou um robô, mas ele é que é. Tudo o que ele tem feito é fantástico e acho que não há ninguém que consiga fazer o que ele faz».
Ganhar é secundário… quase sempre
Biles não é a única a dizer que Uchimura é um robô. O japonês já está habituado: «Muitos atletas estrangeiros dizem que compito como uma máquina. Aceito isso como um elogio».
«Para mim, os gestos e as movimentações que são mecânicas são perfeitas. Um robô consegue ser mais preciso e exato num movimento do que um humano, todas as vezes», continua o ginasta.
A prioridade numa competição para Uchimura não é ganhar. «Espero tocar o coração das pessoas. Prefiro ter um desempenho que as comova», dizia em 2015. Mas agora, à beira de se tornar no primeiro atleta a revalidar o título olímpico no concurso completo – último a fazê-lo foi o compatriota Sawao Kato em 1972 – a lógica mudou um pouco.
«Tudo o que consigo pensar agora é no quanto quero essa medalha de ouro. Isso é tudo», afirma.
Ou quase tudo. Kohei Uchimura foi notícia na última semana por uma razão insólita. O japonês chegou ao Rio de Janeiro ainda em julho e não resistiu à febre do Pokémon Go. O problema é que jogava com os dados móveis ligados e recebeu uma fatura de 4372 euros.
A notícia foi uma surpresa mas o assunto ficou resolvido ao optar por uma tarifa diária fixa de 26 euros com dados ilimitados.
Em tom de brincadeira, o jornal japonês Nikkan Sports atirou que «Uchimura pode não apanhar nenhum Pokémon, mas vai garantidamente apanhar o ouro».
Aversão a ser tocado
Para quem tinha a prioridade de tocar o coração das pessoas, Kohei Uchimura demonstra, desde pequeno, não ser um fã da reciprocidade. A mãe da figura da ginástica garante que o filho tem uma aversão a ser tocado desde pequeno.
Foi precisamente essa aversão que fez de Kohei quem ele é hoje, através de um método de aprendizagem peculiar. Sempre foi individualista: treinava com bonecos de peluche e desenhava os movimentos num caderno para poder analisá-los ao pormenor antes de os ensaiar repetidamente até ficar satisfeito com o resultado.
O perfecionismo foi a pedra basilar na mente da criança. Com seis anos, chorou e esteve perto de desmaiar depois de se ter esquecido da rotina num exercício de solo. Isso é passado agora. Uchimura cresceu, abandonou o ginásio dos pais em que tinha começado com apenas três anos e foi treinar com um campeão olímpico em Tóquio.
A fama veio por arrasto. No Japão, é um ícone. Está ao nível das grandes figuras de futebol e de basebol e tem a sua imagem gravada num Boeing 777 da Japan Airlines. O caso não é para menos, até porque as previsões apontam para que possa ganhar três títulos olímpicos no Rio de Janeiro.
Mérito próprio
O individualismo não lhe permite partilhar o mérito. «Não acredito em Deus, não tenho nenhuma superstição. Mas trabalho muito para não deixar nada ao acaso ou ao sabor da sorte. Se cheguei onde cheguei, é porque nunca senti pressão. O meu pai sempre me repetiu que o importante é ser feliz», garante.
E diz mais: não acredita que tem um talento natural que o destaque dos adversários. Aceita, e pensa, que nasceu para a ginástica artística mas é o trabalho e a dedicação, e não o talento inato, que fazem a diferença a cada prova.
O currículo diz tudo: além do sexto título mundial consecutivo no concurso completo – com o ouro em Londres-2012 pelo meio –, Uchimura contribuiu para o primeiro título mundial por equipas do Japão em 37 anos.
«É um virtuoso. Não se consegue deixar de olhar para ele», elogia Koji Gushiken, último japonês a ser campeão olímpico (1984) do concurso completo antes de Uchimura.
RPS