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É Desporto

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12 de Junho, 2020

Kerri Strug. A dolorosa aterragem em prol da equipa

Rui Pedro Silva

Kerri Strug

Ginasta norte-americana sofreu uma lesão grave durante a prova por equipas no salto de cavalo mas era vista como essencial para a conquista de um título inédito dos Estados Unidos. Incentivada pelo treinador, o histórico Bela Karolyi, mordeu a língua, foi à luta e desempenhou o seu papel.

Kerri Strug esteve para a equipa dos Estados Unidos nos Jogos Olímpicos de Atlanta em 1996 como Shun Fujimoto tinha estado para o Japão em Montreal-1976. Lesionada, incapaz de continuar, mas carregando a responsabilidade de um país inteiro para chegar a uma tão desejada medalha de ouro.

A ginástica artística feminina vinha a ser dominada pela União Soviética e Roménia de forma continuada, sobretudo nas provas coletivas, mas os Estados Unidos queriam intrometer-se na festa. A primeira página de história tinha-se escrito quando Mary Lou Retton vencera o ouro no concurso completo, em 1984, tornando-se a primeira ginasta dos Estados Unidos a consegui-lo. Mas, lá está, essa foi uma edição em que os países europeus de leste boicotaram a competição.

Em 1996, a tensão geopolítica era radicalmente diferente. A Roménia vivia uma era diferente, a União Soviética tinha sido desintegrada e… os Estados Unidos queriam fazer tudo para vencer em casa. Para o efeito, construíram um plantel de luxo que ficou para sempre conhecido como Magnificent Seven.

Kerri Strug era uma das sete. Tinha feito parte da equipa em 1992, conquistando apenas uma medalha, de bronze, na prova coletiva, e não era das mais promissoras. Mas, como demonstrou em 1996, às vezes há méritos intangíveis que só aparecem nos momentos decisivos.

Foi o que aconteceu a Strug. Com 18 anos, sentiu a esperança do país em cima dos ombros. As pernas não tremiam porque, na verdade, tinha acabado de sofrer uma lesão que, em situações normais, seria suficiente para acabar com a sua participação nos Jogos Olímpicos.

O problema? Os Estados Unidos precisavam mesmo – ou pelo menos era essa a perceção – que Strug fizesse o segundo salto no cavalo para atenuar as dificuldades da compatriota Dominique Moceanu e manter a vantagem escassa sobre a Rússia.

Strug, incentivada por Bela Karolyi, que lhe garantiu que era mesmo determinante que voltasse a saltar, não virou a cara ao desafio. Sabia perfeitamente que não estava em condições mas desligou o interruptor da dor por alguns segundos. Apenas os necessários para conseguir sprintar na direção do trampolim, executar a manobra praticamente na perfeição e fazer uma aterragem sólida. Sorriu, acenou para os juízes e… o interruptor religou-se sem pedir licença.

A ginasta norte-americana não conseguia sequer manter-se em pé e sair do colchão sozinha, acabando por ser transportada ao colo pelo treinador. No final, o sacrifício foi recompensado com uma nota de 9,712 mas, na verdade, feitas as contas, os Estados Unidos não precisariam do seu contributo para garantir a medalha de ouro.

Com um estiramento de terceiro grau nos ligamentos do tornozelo e com o tendão danificado, Strug não conseguiu sequer ter autonomia para subir ao lugar mais alto do pódio com o resto da equipa. Mas não precisava disso para se sentir uma nova heroína dos norte-americanos.

O seu gesto foi visto como um ato de coragem e de sacrifício enorme e a fama foi instantânea. Apaixonados por boas narrativas, os norte-americanos ficaram rendidos a Strug e, durante as semanas seguintes, apareceu em tudo o que era programa televisivo, contando a sua história e recebendo aplausos por onde quer que passasse. Há momentos assim. Dolorosos mas banhados a ouro.