Kathrine Switzer. A mulher que ousou correr a maratona
Queria derrubar os mitos e provar que as mulheres também eram capazes de correr os 42,195 quilómetros da prova. Tornou-se um ícone ao ser fotografada a ser empurrada para fora da estrada por um oficial de corrida e acabou por desempenhar um papel fundamental na introdução da maratona feminina nos Jogos Olímpicos a partir de 1984.
O dia que revolucionou o atletismo
Quarta-feira, 19 de abril de 1967. Há 741 atletas inscritos para participar na maratona de Boston e Kathrine Switzer, com o dorsal 261, é um deles. A estudante de jornalismo de 19 anos tinha feito uma viagem de quatro horas de carro na véspera, juntamente com o treinador, o namorado e um colega da equipa de cross-country da universidade de Syracuse, e estava preparada para correr os mais de 42 quilómetros da prova.
A ideia tinha ganhado corpo em dezembro do ano anterior durante uma enorme discussão com o treinador, Arnie Briggs. Kathrine queria correr a maratona de Boston e manifestou precisamente esse objetivo. Do outro lado, Arnie, um homem experiente e com várias maratonas nas pernas, disse que era impossível, que era um esforço demasiado grande para uma «mulher frágil».
Os dois travaram-se de razões durante vários minutos e chegaram a um acordo: se a jovem fosse capaz de correr a distância durante um treino, seria o próprio treinador a levá-la até Boston para a emblemática corrida. E foi isso que aconteceu, com um pequeno bónus. Kathrine sentiu que a distância foi tão simples de correr que sugeriu a Arnie que corressem mais dez quilómetros só para jogar pelo seguro e aumentar a confiança.
A jovem aprendiz de jornalista conseguiu mas Arnie Briggs acabou a desmaiar por causa do frio que se fazia sentir. Mas, fiel à sua palavra, foi ao quarto de Kathrine no dia seguinte para formalizar a inscrição. A partir daí, tudo se compôs. Arnie ia correr com ela e John Leonard, um colega de equipa, também se quis juntar. O núcleo ficou completo com o namorado, Thomas Miller, um jogador de futebol americano e lançador do martelo com aspirações legítimas aos Jogos Olímpicos da Cidade do México. «Se uma mulher consegue correr a maratona, eu também consigo», disse.
A ingenuidade e o perigo
Os quatro fizeram-se à estrada na véspera e chegaram a Boston já pela noite dentro. O início da corrida estava marcado para o meio-dia, pelo que a margem para repousar e tomar um bom pequeno-almoço era grande.
Aí, a ingenuidade de Kathrine fez-se notar. Arnie Briggs, mais batido no assunto, fez questão de forçar a jovem a alimentar-se bem, com tudo o que pudesse ajudar nos quilómetros de maior dificuldade. Foi também nessa altura que lhe deu cápsulas de açúcar para ir usando durante a corrida. «Para que é que quero isso?», perguntou-lhe. «Então, para dar energia!». Kathrine não fazia ideia. Nunca tinha associado açúcar a energia e julgava que comer um pedaço de pão ou açúcar teria o mesmo efeito. O caminho de aprendizagem estava apenas no início.
O ambiente na linha de partida surpreendeu. A presença de uma mulher foi bem vista pelos outros corredores, que insistiam em tirar uma fotografia, perguntavam se o objetivo era correr a distância completa e pediam até sugestões de argumentos para poderem convencer as esposas a começaram a correr. Kathrine estava nas nuvens… e de batom. «Mas por que é que estás a usar batom?», perguntou-lhe o namorado. «Uso batom todos os dias, não é hoje que vou deixar de usar», replicou-lhe.
O mar de rosas terminou à chegada do quarto quilómetro. Quando nada o fazia antever, um oficial de corrida começou a persegui-la e empurrou-a de forma violenta na direção do passeio. «Sai já da minha corrida e dá-me esse dorsal!», gritou um furioso Jock Semple. Foi por essa altura que a capacidade física de Thomas Miller, o namorado, fez a diferença: à boa maneira do futebol americano, fez-lhe uma placagem forte e projetou-o para o passeio.
A situação foi captada pelas câmaras dos jornalistas e gerou um enorme burburinho. Enquanto corria, Kathrine começou a ser questionada sobre os verdadeiros motivos da sua decisão e se, na verdade, aquilo não parecia de uma manobra de marketing. Kathrine não era a primeira mulher a correr a maratona de Boston – Bobbi Gibb tinha-o feito em 1966 -, mas era a primeira a fazê-lo com um dorsal. Inscrita com o nome K. V. Switzer, o mesmo com que assinava os seus trabalhos jornalísticos na faculdade, a atleta nascida na Alemanha passou pelos crivos da organização e estava a fazer história.
O stress do confronto físico afetou o grupo. Depois de discutir com o namorado, que a culpava por poder ser expulso da federação e falhar os Jogos Olímpicos, Kathrine começou a chorar e a pôr tudo em causa. Mas o motivo mais forte continuava presente: «Sabia que se desistisse ninguém iria acreditar que as mulheres tinham a capacidade para correr os 42 quilómetros. Se desistisse, toda a gente iria dizer que tinha sido uma manobra de marketing. Se desistisse, ia provocar um retrocesso no desporto feminino, em vez de um avanço. Se desistisse, nunca iria correr em Boston. Se desistisse, Jock Semple e todos os iguais a ele iriam vencer. O meu medo e humilhação transformaram-se em raiva».
O simbolismo em jogo
Kathrine Switzer demorou quatro horas e vinte minutos a percorrer a distância e teve muito tempo para pensar na importância de conseguir acabar a maratona de Boston. A dada altura, começou a culpar as mulheres. «Depois percebi que a culpa não era delas, não havia oportunidades.»
«Talvez elas acreditem no mito de que os órgãos reprodutores podem cair se uma mulher correr a maratona. Talvez isso as assuste. Talvez nunca tenha havido uma oportunidade para provar quão estapafúrdia é essa ideia. Os meus pais e o meu treinador tinham-me dado esta oportunidade e eu não era especial: tinha apenas sorte», escreveu num livro 40 anos mais tarde.
«O meu pensamento mudou de foco. A razão para não haver desportos universitários femininos nas grandes universidades, não haver bolsas, prémios financeiros ou qualquer corrida com mais de 800 metros é porque não existem oportunidades para as mulheres provarem que querem isso mesmo. Se ao menos elas pudessem fazer parte de algo maior, talvez sentissem o poder do sucesso e isso mudasse. Depois do que aconteceu, sentia-me responsável para criar essas oportunidades», acrescentou.
E foi precisamente isso que fez – e continuou a tentar fazer – no futuro. O sucesso na maratona de Boston tinha sido motivo de destaque em todos os jornais e a perceção de que o grupo tinha feito história surgiu quando pararam, na viagem de regresso, numa estação de serviço durante a madrugada.
Um homem estava lá a ler o jornal e Kathrine apercebeu-se de que tinha a sua imagem na última página. Os quatro festejaram. «A partir daí, já não havia perigo de adormecerem ao volante. Estavam no paraíso, pareciam galos na capoeira até chegarmos a Syracuse. Eu só me conseguia rir das piadas deles, mas estava com um sentimento muito diferente. Para eles, tinha sido uma coisa de um dia. Para mim, seria mais do que isso. Muito mais.»
O rescaldo da maratona e o virar da página
O confronto com a organização continuou a ser motivo de destaque. Para Will Cloney, o diretor da Associação Atlética de Boston, Jock Semple tinha agido de forma correta. «As mulheres não podem correr a maratona de Boston porque as regras proíbem-no. Se não tivermos regras, a sociedade será um caos. Eu não as faço, mas tento cumpri-las. Não temos espaço na maratona para gente não autorizada, mesmo que seja um homem. Se aquela rapariga fosse milha filha, ter-lhe-ia batido.»
Cloney era o sinal de uma resistência a perder a força. Kathrine Switzer liderou o movimento e em 1972, finalmente, as mulheres foram autorizadas a correr a maratona de Boston. Em 1974, a pioneira venceu mesmo a competição feminina, com um tempo de três horas e sete minutos.
A luta estava, ainda assim, apenas no começo. Era preciso mais. A corredora esteve nos Jogos Olímpicos de 1972 como jornalista e percebeu que tinha de criar uma onda de apoio para que a maratona feminina pudesse ser prova olímpica. Depois de um convite para criar uma prova feminina em Atlanta, sentiu que era a oportunidade perfeita para pegar naquela ideia e almejar muito mais: um circuito de provas internacional, aberto a todos os participantes, que pudesse atrair mais interessadas e garantir os requisitos mínimos do Comité Olímpico Internacional, que exigia que uma prova tivesse de ser disputada num mínimo de três continentes e 25 países.
Em 1984, em Los Angeles, o esforço surtiu efeito e Kathrine Switzer começou a ser um sinónimo perfeito da maratona feminina. Mais recentemente, contou que quando vai à maratona de Boston há mulheres que choram nos seus ombros. «Choram de alegria porque correr mudou-lhes a vida. Sentem que são capazes de fazer tudo.»
No ano passado, em 2017, para assinalar o cinquentenário da primeira maratona, Kathrine Switzer voltou a correr em Boston com o dorsal 261. Foi a última vez que o número foi utilizado.