Justin Gatlin. O homem que estragou o argumento de Bolt
Tem 35 anos, já esteve suspenso duas vezes por doping e tem competido perante os assobios dos adeptos. Na última corrida do jamaicano, não seguiu o que estava escrito e decidiu fazer história por si mesmo. Imperdoável?
A opção que não estava na lista
Usain Bolt é tão carismático que houve alturas em que pareceu ganhar corridas mesmo antes do tiro de partida. Todos os tiques, gestos e interações com as câmeras eram seguidos com euforia, prevendo que os menos de dez segundos que se seguiriam seriam apenas a constatação do óbvio: Bolt é o mais rápido do mundo. Bolt é o melhor de sempre. Bolt não perde corridas.
Foi por isto mesmo que o público de Londres marcou presença em peso para assistir à última corrida de Bolt nos 100 metros de uma grande prova. A despedida tinha sido anunciada e, como bons amantes da história do desporto, ninguém quis perder o momento. Ninguém quis sequer pensar que o jamaicano não faria uma última corrida relâmpago, resistindo a toda a concorrência para tocar uma última vez na glória.
A pressão era grande, a exigência era máxima. Ninguém segue um evento destes para ver um herói perecer. Ninguém está à espera que um vilão surja para vestir a capa de momento anti-clímax, provando que a vida é real e nem sempre tudo corre de acordo com o guião de Hollywood. É como o filme que segue a equipa de basquetebol de um liceu desconhecido que chega até à final contra todas as expetativas e tem um lance livre a acabar o jogo para garantir o título. E o rapaz falha.
Sentimo-nos traídos. O argumentista roubou-nos a sensação de que é possível acreditar em boas histórias, em momentos que nos fazem sentir que a justiça existe e que todos podem sonhar em alcançar grandes coisas na vida.
Foi o que aconteceu na final de Bolt. Todos queriam a vitória de Bolt. Era o final perfeito. Mas o argumentista tinha outra ideia. É claro que havia outros fins à espera de serem usados: talvez a despedida não fosse mais do que uma passagem de testemunho. Talvez a lenda pudesse fazer a transição para um compatriota e Yohan Blake subisse ao lugar mais alto do pódio. Talvez a ideia fosse patrocinar uma mudança de geração e ver Christian Coleman, de 21 anos, assumir-se como a nova grande figura dos 100 metros. Mas não, o que aconteceu foi a opção que ninguém queria ver na lista. Foi Justin Gatlin, o norte-americano com um passado de doping e cinco anos mais velho do que Bolt, a vencer.
Uma história à sua maneira
Justin Gatlin correu para si. O Mundial de Londres não foi a primeira vez em que surgiu na pele de vilão. Fora assim em Pequim-2015 e no Rio de Janeiro-2016. Nas duas vezes, Usain Bolt resistiu e subiu ao lugar mais alto do pódio. Agora deixou de ter argumentos.
Para Gatlin foram três dias difíceis. Foi assobiado nas eliminatórias, foi assobiado nas meias-finais, foi assobiado na final e voltou a ser assobiado na cerimónia de entrega das medalhas, mesmo com a organização a antecipar o horário para que o estádio não estivesse tão cheio.
Em qualquer das ocasiões, o novo campeão do mundo não se deixou incomodar. «Fi-lo por mim, pelo meu treinador, pela minha família e pelo meu país», garantiu. A fórmula do sucesso tinha sido essa mesmo, uma despreocupação total com o ambiente e o significado que o rodeava para conseguir centrar o foco na corrida.
«Este ano aproveitei algum tempo para pensar no sucesso que tive em 2005 e na forma como corria. Não me preocupei com tempos, não me preocupei se chegava aos 9,70 segundos ou se batia o recorde do mundo. Em nada disso. Só queria entrar na pista e agarrar a corrida. Foi o que fiz aqui. E viram um bocadinho do Justin de 2005. A divertir-se, focado na corrida, a olhar apenas para a sua pista e a trabalhar no duro», afirmou depois do título em declarações ao Público.
A vitória garantiu o descarregar de adrenalina. Num primeiro momento colocou o indicador à frente da boca, num claro sinal de quem mandava calar o público, seguindo-se depois uma justa vénia a Bolt. «Somos rivais na pista mas na área de aquecimento brincamos, dizemos piadas e passamos bons tempos. A primeira coisa que ele fez foi congratular-me e dizer-me que eu não merecia as vaias. Agradeci-lhe por me inspirar durante a minha carreira, é um homem fantástico.»
Bolt reagiu com simpatia, garantiu o norte-americano: «Deu-me os parabéns. Ele disse-me que merecia, ele sabe o quanto trabalho». A rivalidade entre os dois é antiga e nem sempre as palavras foram apenas de cortesia. Em agosto de 2016, depois de Gatlin falhar a presença na final olímpica dos 200 metros, o jamaicano lançou uma boca: «Pode ver-se pelos 100 metros que está a ficar velho».
Um ano antes, no Mundial de Pequim, Gatlin também já tinha feito uma referência à idade. «Estou feliz por ser o mais velho em pista e ainda assim correr bem». A idade de Gatlin é um facto incontornável nesta história: com 35 anos, tornou-se o mais velho campeão mundial dos 100 metros, batendo a marca que pertencia ao britânico Linford Christie (33 anos em 1993).
Deixar a marca no hectómetro
A final de Londres foi a quarta mais lenta da história dos Mundiais (desde 1983). Apenas os quatro primeiros baixaram a barreira dos dez segundos e 9,92 foi suficiente para o norte-americano conquistar o título. Há doze anos, o mesmo Gatlin foi campeão em Helsínquia com 9,88. De facto, é preciso recuar até 1995 para encontrar um tempo mais lento no campeão: canadiano Donovan Bailey fez 9,97 segundos na edição de Gotemburgo.
Numa distância que já foi corrida em menos de dez segundos por 763 vezes, Justin Gatlin tem um lugar especial. A longevidade de Asafa Powell é surpreendente (97 vezes) mas o norte-americano surge no lugar seguinte, com 57 ocasiões. Depois dele, ambos com 52 ocasiões a baixar os dez segundos, estão Maurice Greene e Usain Bolt. A título de curiosidade, Francis Obikwelu fê-lo em sete corridas.
Justin Gatlin mostrou ser também, uma vez mais, o antídoto perfeito para Bolt, já que o jamaicano não perdia uma final dos 100 metros, em qualquer prova, desde o meeting de Roma de 2013.
A sombra do doping
O passado de Gatlin assume um peso muito significativo na forma como é visto dentro da competição e pelo público. Nem mesmo Sebastian Coe, presidente da Federação Internacional de Atletismo, fugiu ao tema minutos antes de entregar a medalha de ouro: «Não vou estar a fazer muitos elogios a alguém que esteve suspenso duas vezes e que sai daqui com um dos nossos prémios mais cintilantes», afirmou à BBC, citado pelo Público.
Tudo começou em 2001. Na altura, com 19 anos, acusou positivo a anfetaminas e foi suspenso por dois anos. A defesa baseou-se no facto de sofrer de distúrbio do défice da atenção desde criança e ser medicado desde essa altura. O argumento foi considerado válido, a suspensão reduzida para um ano e o relatório refere que Gatlin não teve qualquer intenção de enganar o sistema.
Cinco anos depois, o peso foi maior. Depois de acusar testosterona, a suspensão inicial foi de oito anos, tendo sido posteriormente reduzida a metade perante a disponibilidade demonstrada pelo norte-americano para ajudar no combate ao doping.
«Não me responsabilizo por estes resultados porque nunca tomei nada conscientemente nem permiti que me administrassem qualquer substância proibida», garantiu. Agora, a competir desde 2010, Justin Gatlin não caiu no erro, consciente ou inconscientemente, novamente e está a fazer história, recusando ser uma nota de rodapé na despedida de Bolt.
RPS