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É Desporto

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06 de Junho, 2018

Jung-hwan Ahn. Um golo que lhe valeu o desemprego em Itália

Rui Pedro Silva

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Coreia do Sul garantiu o apuramento para os quartos de final do Mundial-2002 no prolongamento do jogo com a Itália. Jung-hwan Ahn marcou o golo do triunfo aos 118 minutos e tornou-se herói nacional mas do outro lado do mundo, o presidente do Perugia, equipa à qual estava emprestado, não achou muita piada. 

 

Heróis sul-coreanos

 

Dizer que a Coreia do Sul tomou o Mundial-2002 de assalto é uma frase que pode ter várias interpretações, desde a metáfora habitual ao literalmente falando passando pelo irónico eufemismo. A jogar em casa, a meias com o Japão, a seleção orientada por Guus Hiddink foi superando etapas e atingiu, surpreendentemente, as meias-finais da prova. Aí, a Alemanha foi mais forte.

 

Até lá chegar, os heróis sucederam-se. Ji-sung Park marcou a Portugal o golo que valeu o apuramento para os oitavos e, uma época depois, deu início à aventura europeia que incluiu passagens por PSV Eindhoven e Manchester United. Nos quartos de final, Myung-bo Hong apontou o derradeiro penálti no desempate com a Espanha e mais tarde viria a fazer parte do plantel dos LA Galaxy.

 

No meio, Jung-hwan Ahn não teve direito ao mesmo tratamento, até porque quando apontou o golo decisivo à Itália no prolongamento, durante os oitavos de final, o sul-coreano já tinha começado a aventura no futebol europeu – cumprira a segunda temporada de empréstimo ao Perugia.

 

Uma história com muitos ângulos

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Entender o impacto do golo de Ahn só é possível se o contexto for bem descrito. Não se trata apenas de um simples Eder contra França na final do Europeu, quando um jogador que atua no campeonato do país adversário veste a papel de vilão e decide o encontro.

 

Ahn foi mais a estocada final do que pareceu ser uma enorme conspiração. O último soco no estômago num ataque sem piedade com um único objetivo: apurar a Coreia do Sul para os quartos e deixar pelo caminho quem quer que estivesse do outro lado, mesmo que uma histórica e poderosa Itália.

 

Este é também o jogo de Byron Moreno, o polémico árbitro equatoriano que mergulhou em escândalos após a fase final, muito por culpa deste encontro. O desfile de decisões controversas começou com um penálti assinalado aos cinco minutos contra a Itália: Ahn, longe ainda de ser o herói, permitiu a defesa a Buffon.

 

A Itália escapou à primeira bala e adiantou-se no marcador, por Vieri, aos 19 minutos. A ordem natural do futebol, do ponto de vista teórico, parecia estar a ser seguida, mesmo que a seleção de Trapattoni não pudesse contar com Nesta e Cannavaro no eixo da defesa.

 

Mas, lá está, a sucessão de ataques estava apenas a começar. O jogo tornou-se cada vez mais agressivo e num último esforço, aos 89 minutos, Ki-hyeon Seol levou o encontro para o prolongamento. Mais meia hora de futebol, disputado em condições extremas, e debaixo do estereótipo de que os sul-coreanos são ratos atómicos que não param de correr do primeiro ao último apito.

 

A estocada final e as reações

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Byron Moreno voltou a ser protagonista no prolongamento. Na primeira parte, expulsou Totti por acumulação de amarelos, depois de uma alegada simulação de penálti, e no segundo tempo anulou um golo de ouro a Damiano Tommasi, mantendo as esperanças da Coreia do Sul intactas. Depois, aos 118 minutos, Ahn foi novamente protagonista mas desta feita, em vez de falhar um penálti, guiou a Coreia do Sul para os quartos.

 

Os italianos ficaram furiosos. Trapattoni e Totti atacaram a equipa de arbitragem e o presidente do Perugia, Luciano Gaucci, a milhares de quilómetros, decidiu revogar imediatamente o contrato que ligava Ahn ao clube italiano. «Não tenho qualquer intenção de continuar a pagar o salário a alguém que arruinou o futebol italiano.»

 

«Aquele senhor nunca mais vai meter o pé em Perugia. Só foi um fenómeno quando jogou contra a Itália. Sou um nacionalista e vejo este tipo de comportamento como uma afronta ao orgulho italiano e também como uma ofensa a um país que lhe abriu as portas há dois anos», continuou.

 

Guus Hiddink defendeu o jogador. «É uma reação infantil. Faz parte do desporto ter jogadores a atuar noutros campeonatos. Estão a querer dizer que o Lebouef e o Desailly não podem marcar à Inglaterra na sequência de um canto? É quase demasiado ridículo estar a falar disto.»

 

Gaucci clarificou a sua posição e garantiu que o problema não estava no golo mas sim na forma como o jogador se comportou depois. «Não teve nada a ver com o golo, mas sim pelas declarações ofensivas para mim e para a nação italiana», disse. «Podia ter marcado dez que não me teria sentido ofendido, foram os comentários que fez.»

 

E que ofensas foram essas? «Disse que o futebol coreano era superior ao italiano, quando a Itália é um país do futebol. Tratámo-lo bem e com amor mas os comentários foram ofensivos. Senti-me ofendido, devia ter respeitado as outras nações da mesma forma que respeita a sua.»

 

Uma carreira longe de Itália

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O treinador do Perugia não foi tido nem achado no confronto. Serse Cosmi considerou Ahn um jogador com um enorme potencial e demonstrou abertura para que a equipa renovasse o contrato, mas a decisão de Gaucci estava tomada.

 

A FIFA também não se quis intrometer. «É algo entre o jogador e o clube», comunicou um assessor de imprensa.

 

As declarações de Gaucci geraram tanto mediatismo a nível internacional que o presidente foi forçado a recuar e a oferecer a renovação do empréstimo mas, depois de tudo o que tinha sido dito, Ahn decidiu recusar e continuar a carreira longe de Itália.

 

A solução encontrada foi jogar no Japão, onde representou o Shimizu S-Pulse e o Yokohama Marinos até embarcar em nova viagem europeia em 2005. Depois de uma época no Metz e metade da temporada no Duisburgo, ambas sem grande sucesso, Ahn regressou à Coreia do Sul.

 

Hoje, com 42 anos, continua a ser recordado por esse golo, por esse episódio com Gaucci. O talento do Beckham sul-coreano, como chegou a ser visto, nunca se expressou ao mais alto nível mas na seleção voltou a ser importante, marcando no Mundial-2006 ao Togo no triunfo por 2-1.

 

A carreira terminou no início de 2012. «Passei por várias culturas futebolísticas em países diferentes e esses foram tempos de muita sorte na minha vida. Cheguei ao Mundial três vezes e aproveitei tudo o que um futebolista pode aproveitar», disse, emocionado.