Joseph Dosu. O campeão olímpico que se recusou a passar a vida numa cadeira de rodas
É a história de uma vida que foi e da vida que poderia ter sido. Há precisamente vinte anos, Joseph Dosu sagrou-se campeão olímpico em Atlanta e tinha acabado de assinar um contrato com a Reggiana. Um acidente de viação tirou-lhe quase tudo, menos a fé.
E num instante tudo muda
*publicado originalmente a 3 de agosto de 2016
Ia com um amigo no carro a caminho de casa depois de um jogo, porque não via a família há muito tempo. Era de noite e a partir de certa altura só viu vacas na estrada. Tentou desviar-se mas perdeu o controlo do carro.
- Estás bem, Saturday?
- Sim, estou bem.
- Eu não estou.
A carreira de Joseph Dosu acabou ali, na noite de 7 de junho de 1997, horas depois de a Nigéria ter vencido o Quénia por 3-0 em Lagos na qualificação para o Mundial-1998. Para o guarda-redes de 23 anos, campeão olímpico em Atlanta um ano antes e colega de equipa de Pacheco na Reggiana, não havia mais jogos a disputar.
O diagnóstico inicial foi devastador: «A primeira coisa que me disseram assim que cheguei ao hospital foi que não poderia voltar a jogar futebol. Eu não os quis ouvir, acreditei em Deus».
Os danos na espinal medula faziam antever o pior. Depois de uma operação de seis horas em Israel, Dosu voltou a ouvir o mesmo cenário pessimista: o futebol já era e nunca mais voltaria a andar sozinho, estando destinado a passar a vida numa cadeira de rodas.
Joseph Dosu, fortemente religioso, recusou-se a acreditar uma vez mais. E invocou novamente Deus. A mulher, Abimbola, foi o pilar mais importante na tentativa de reabilitação.
«Significou tudo para mim. Ficou sempre comigo, não há nada que lhe possa apontar. Sempre que precisei, estava lá. Se fosse outro tipo de mulher, talvez tivesse feito as malas e ido embora», elogia Dosu, anos depois, a viver uma vida «normal».
Qualidade nos genes
Joseph Dosu pertence a uma família de guarda-redes. O irmão mais velho, David, foi o primeiro a testar as balizas e defendeu as seleções jovens na Nigéria numa equipa que tinha Samson Siasia, presente no Mundial-1994 e antigo jogador do Tirsense.
A mãe, uma togolesa que vendia feijões, não queria que Joseph lhe seguisse os passos. Já bastava um futebolista e o mais importante era que Joseph terminasse os estudos. O pai foi neutro na discussão mas David conseguiu convencê-la.
«Nasci com as qualidades de um guarda-redes. Tudo o que tive de fazer foi explorar essas capacidades para que o mundo pudesse ver», garante, assinalando que o irmão mais novo (no total são seis, quatro rapazes e duas raparigas), John, é atualmente guarda-redes no campeonato nigeriano.
Dosu jogou pela primeira vez ao lado de Sunday Oliseh nos escalões de formação do Julius Berger. Os dois desenvolveram uma forte amizade e partilharam o mesmo empresário: Churchill Oliseh, o irmão mais velho de Sunday.
Foi graças a Churchill que Joseph Dosu foi prestar provas na Reggiana em 1996, pouco tempo antes dos Jogos Olímpicos de Atlanta. Sunday já lá tinha jogado, em 1994/1995, e os responsáveis italianos decidiram avançar com uma proposta, propondo um contrato de quatro épocas.
«Foi difícil. Estás num país em que não conheces ninguém. Tentas falar com as pessoas em inglês e elas, apesar de perceberem, fingem que não», queixa-se, reconhecendo porém a importância de poder tirar «a família da situação em que estava».
Durante alguns dias, numa equipa que tinha Adolfo Valencia, Ioan Sabau e o português António Pacheco, Dosu tentou aprender o máximo que podia na sombra dos dois guarda-redes italianos da equipa: Ettore Gandini e Marco Ballotta.
Até que surgiu a convocatória improvável: Joseph Dosu ia representar a Nigéria nos Jogos Olímpicos de Atlanta.
Da sombra para a ribalta
Joseph Dosu jogou os seis jogos da Nigéria nos Jogos Olímpicos mas não era suposto. Emmanuel Babayaro e Abiodun Baruwa estavam na frente na luta pela baliza e de Dosu não se esperava muito.
O cenário mudou durante os jogos de preparação. Depois de uma derrota num particular com o Togo, os responsáveis nigerianos ficaram tão mal impressionados com o resultado que pediram imediatamente um novo encontro, para ultimar detalhes. Aí, o selecionador Jo Bonfrere anunciou Dosu seria titular.
O ministro do Desporto estava presente e avisou-o: «Se te portares mal, sais da equipa». «Mas Bonfrere deu-me o apoio necessário para acreditar em mim próprio», lembra.
O jogo das meias-finais, 4-3 no Brasil com golo de ouro no prolongamento, foi o que ficou mais marcado na memória: «Quando fizemos o 4-3, corri para o Okocha e perguntei-lhe por que tinha atirado a camisola para o chão se o árbitro ainda não tinha apitado para o final. Ele riu-se e perguntou-me se eu não tinha visto a final do Europeu (Alemanha-Rep. Checa, decidida por Bierhoff). Estava fora de mim».
O título inédito de uma seleção africana nos Jogos Olímpicos deixou o continente em festa. «Quando regressámos, fizemos uma paragem na Guiné-Conacri e receberam-nos como se fôssemos guineenses. Foi uma receção esmagadora, estávamos no topo do mundo. Se ali já era assim, o que seria quando chegássemos à Nigéria…», perguntava-se.
Subir até à queda
Joseph Dosu estava no melhor momento da carreira. Não tinha espaço na Reggiana mas a 9 de novembro jogou pela primeira vez pela seleção principal da Nigéria, na qualificação para o Mundial-1998. Foi o primeiro de três jogos, num ciclo que terminou no 1-1 com o Quénia a 12 de janeiro de 1997 em Nairobi.
Quando o Quénia retribuiu a visita, Dosu não saiu do banco. Foi o dia em que teve o acidente. O Mundial-1998 estava ali tão perto mas não teria a oportunidade de jogar. Ainda assim, no jogo inaugural com a Espanha, esteve nas bancadas do Stade de la Beaujoire em Nantes.
«Depois da recuperação, disse que iria ao Mundial apoiar a equipa. Por isso fui para França com o meu empresário, o Churchill Oliseh. Estivamos lá antes do jogo mas não deixaram os jogadores saber», conta Dosu.
(Noutra versão dos factos, Sunday Oliseh garante que falou com o antigo colega antes do jogo e até discutiram a possibilidade de marcar um golo. Continuemos com a versão mais romântica, nas palavras de Dosu…)
«Quando foi o hino, entrámos no estádio e o Sunday viu-nos, mas só teve a certeza que éramos nós quando lhe acenei. Por isso, quando marcou, correu para a zona em que estávamos sentados e começou a gritar o meu nome. Os outros jogadores estavam chocados a perguntar se eu estava lá», continua.
Uma nova vida
Jogar futebol deixou de ser uma possibilidade mas Dosu nunca se deixou abater na luta pela recuperação. Em 2000, voltou a aparecer em público, num jogo amigável organizado por Taribo West, e foi ovacionado.
Os anos passaram e Dosu revigorou-se. Tornou-se comentador na televisão e responsável pela academia do Westerloo, clube belga, na Nigéria. O objetivo é fazer por crianças o que outros fizeram por ele.
Até a relação com a condução foi normalizada: «Quando voltei ao volante, ainda passei mal algumas noites. Mas agora já passaram muitos anos, não olho para trás, só penso no futuro».
É também por isso que chega a estar vários anos sem olhar para a medalha olímpica, que está guardada num banco.
RPS