José Mourinho. O Toque de Midas invertido
É difícil explicar a alguém sem memória do início do século XXI o que aconteceu com José Mourinho quando o técnico português deu os primeiros passos numa carreira a solo, depois de finalmente se libertar dos papéis de braço-direito de Robson e Van Gaal.
A atitude, método e garra foram apresentados no Benfica mas não houve tempo para aparecerem resultados concretos. Em Leiria, provou que tinha a lição bem estudada e, quando chegou ao FC Porto, deixou de haver dúvidas de que o treinador de Setúbal era, de facto, especial.
É aceitável dizer que a personalidade de Mourinho não mudou um centímetro desde aquele período. É legítimo dizer que o passar dos anos e os cabelos brancos tornaram-no mais amargo, mas a propensão para intervenções icónicas sempre esteve lá. A conferência de imprensa a arrasar Sabry, a promessa do título em condições normais – e anormais -, e a ameaça de que a eliminatória não estava fechada após a derrota nas Antas com o Panathinaikos compõem apenas o topo de uma pirâmide com vários andares.
Pode também parecer difícil compreender que José Mourinho chegou ao FC Porto no período mais difícil da presidência de Pinto da Costa. O clube preparava-se para perder o terceiro título consecutivo, uma figura como Jorge Costa tinha sido excluída por Octávio Machado e os resultados em campo não ajudavam.
O FC Porto de José Mourinho, futuro campeão sem discussão na mente do próprio, não era mais do que alguém a correr por fora e longe da pujança do final da década de 90. O primeiro verão trouxe novidades: Jorge Costa regressou do empréstimo ao Charlton, Maniche veio da equipa B do Benfica, Paulo Ferreira de Setúbal, Pedro Emanuel do Bessa e, mais importante, Nuno Valente e Derlei de Leiria.
Não foram as únicas contratações mas foram as mais importantes. Com um recrutamento exclusivamente nacional (fora o empréstimo) e com uma margem de erro elevada – jogar no FC Porto traz sempre uma exigência maior -, ninguém sabia exatamente o que esperar desta equipa.
Ninguém excepto Mourinho. Paulo Ferreira e Nuno Valente tornaram-se laterais de eleição (e seleção), Jorge Costa recuperou o estatuto ao lado de um Ricardo Carvalho em crescimento, e Maniche e Derlei foram pedras essenciais do meio-campo para a frente, tanto a atacar como a defender.
Foi aqui que nasceu o Toque de Midas. De terceiro classificado em 2002, garantindo a presença na UEFA apenas na última jornada, o FC Porto tornou-se a equipa mais forte de Portugal, sem discussão, e num grande candidato à conquista da Taça UEFA.
Fê-lo com base num grande investimento? Não. Fê-lo porque Mourinho pegou num punhado de jogadores de 8 ou 80 e pô-los a dar 100%, de potencial pleno, do início ao fim. Foi bicampeão, venceu a Taça UEFA, a Liga dos Campeões, uma Taça de Portugal, uma Supertaça e seguiu para Londres com o estatuto de grande sensação europeia.
Padrão de sucesso manteve-se até Milão
A realidade do Chelsea era diferente da do Porto mas a ideia subjacente era a mesma: os blues queriam muito um campeonato que fugia desde a década de 50. A jogar por fora, e agora já com um investimento contundente, Mourinho foi fiel ao seu padrão de sucesso.
Com ele ao comando, os jogadores pareciam dar sempre mais do que valiam no mercado. Eram especiais, reagiam positivamente aos estímulos e davam à vida por ele se preciso. A ligação entre grupo e treinador era importante e nada parecia pôr isso em risco.
Mourinho apostava forte, não recuava e parecia ganhar sempre. A cada afirmação arrogante, o resultado seguinte confirmava que afinal podia ser apenas realista. A postura provocadora ganhou inimigos em Inglaterra mas o bicampeonato pelo Chelsea, apesar de falhar na Europa, serviu para aumentar a sua aura.
O início do fim no Chelsea deu-se com as contratações de Ballack e Shevchenko em 2006. Foram recebidas com estranheza. Não pelos montantes de investimento, mas porque não encaixavam na lógica de jogadores que precisavam de ser potenciados porque não estavam a ser devidamente aproveitados. O alemão e o ucraniano tinham uma carreira sonante, de resultados feitos, e não se deram bem com Mourinho.
Este foi o primeiro grande sinal: Mourinho tem um problema com jogadores conceituados. A forma como lida com eles é diferente da forma como lida com alguém que tem algo a perder. E a resposta que dão em campo também é radicalmente diferente, até porque estes não estão dispostos a ouvir da mesma forma.
No desafio seguinte, em Itália, voltou a assumir o comando de uma equipa que tinha um desafio claro de outsider: não a nível doméstico, onde os títulos pareciam ser uma condição normal, mas sim na Europa, onde a obsessão passava por recuperar a dimensão da década de 60, voltando a ganhar um título europeu.
Explorando jogadores como Milito, Eto’o, Zanetti e Sneijder, o Inter cumpriu a profecia na segunda temporada, abrindo caminho para José Mourinho largar Itália e rumar a Espanha para liderar o Real Madrid. Aqui, como em Milão, o objetivo era a glória europeia. Aqui, ao contrário de San Siro, não tinha um grupo de jogadores desejosos de encontrar um líder autoritário. E havia um super Barcelona.
Algo aconteceu pelo caminho
Não é fácil indicar exatamente onde é que o Toque de Midas de Mourinho ficou. Algures pelo caminho, o treinador português deixou de ser alguém capaz de potenciar jogadores e passou a ser alguém com dificuldade para tirar o máximo de cada um que tinha à disposição.
A passagem pelo Real Madrid pode ser vista como um fracasso. Sim, a equipa avançou até às meias-finais da Liga dos Campeões, algo que não acontecia há quase uma década, mas o objetivo não era ver a glória, mas sim alcançá-la. E a nível interno o título de 2012, por muito fantástico que tenha sido, não foi suficiente para inverter a tendência de subjugação ao Barcelona e aos ideais de Guardiola.
Os desafios seguintes no Chelsea e no Manchester United acentuaram esta tendência, apesar da Premier League e da Liga Europa no currículo. Em 2004, ao sair do FC Porto, ninguém acreditaria que Mourinho fosse capaz de, um dia, desperdiçar os talentos de De Bruyne e Salah, por exemplo. Ou ser incapaz de garantir um relacionamento saudável com Pogba para que o rendimento em campo fosse incomparavelmente maior.
Mourinho perdeu-se no meio dos seus demónios. Perdeu critério, ficou sem capacidade de entender um plantel e saber que um jogador com 20, 21, 22 anos em 2018 já não é igual ao que era em 2002. Hoje, Mourinho é uma sombra do que foi e o futuro é visto como uma grande incógnita, tanto para os que gostam dele como para os que nunca se renderam.
O futebol andou a uma velocidade muito mais alta do que Mourinho foi capaz de evoluir. A personalidade cativante do passado, onde cada declaração mais audaz era correspondida por um resultado do mesmo nível, foi substituída por um perfil amargurado com afirmações despropositadas, e tristes por já nunca definirem a realidade.
O próximo passo de Mourinho será difícil. O seu perfil de treinador está a perder adeptos um pouco por toda a Europa ao ponto de se pensar que mesmo para o Benfica não seria uma boa opção. Hoje, Mourinho é sinónimo de um treinador que exige milhões em reforços mas que depois é incapaz de os aproveitar.
Haverá quem continue a querer arriscar? Talvez, afinal a marca Mourinho ainda é sonante e capaz de convencer milionários que não esquecem o que o português já foi. Mas não haja dúvidas: Mourinho não é mais do que uma sombra triste do que foi no passado. E isso deixa-nos a todos nós, adeptos do futebol e da transformação que operou no início do século XXI, desiludidos.