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É Desporto

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22 de Março, 2018

Jody Scheckter. A metamorfose do africano campeão pela Ferrari

Rui Pedro Silva

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Era um piloto perigoso e uma fonte de acidentes nos primeiros anos na Fórmula 1 mas a experiência e os acontecimentos traumáticos provocaram uma verdadeira metamorfose na postura que tinha em pista. Sul-africano caiu no goto de Enzo Ferrari e foi, até aparecer Michael Schumacher, o último piloto a dar um título de campeão à escuderia italiana. 

 

Atrevimento sem limites

 

Quando estava ao volante não pensava em mais nada. Não tinha medo, não sentia responsabilidade, não olhava a meios para atingir os fins. Era um génio de extremos: tão depressa era brilhante no que fazia como estava a provocar a balbúrdia após mais uma manobra perigosa que punha a vida de todos em risco.

 

Nascido a 29 de janeiro de 1950 na África do Sul, Jody Scheckter aproveitou o ambiente familiar – o pai tinha um stand de automóveis da Renault – para aprender a conduzir muito jovem e lançar-se no mundo do automobilismo. Já na altura os sinais eram… perigosos: na primeira corrida de carácter nacional que fez, viu a bandeira preta devido à condução perigosa.

 

Do sul de África, passou para a Grã-Bretanha. O diagnóstico estava feito: era genialmente talentoso mas tinha de ser domado para poder ter uma palavra a dizer no mundo das corridas. A McLaren ofereceu-lhe a transição para a Fórmula 1 em 1972, apenas dois anos depois de chegar a Inglaterra, e o piloto não desiludiu, terminando o Grande Prémio dos Estados Unidos na nona posição.

 

A temporada seguinte ajudou a construir o rótulo de piloto imprudente. Tinha chegado a acordo para fazer algumas corridas como terceiro piloto da McLaren e até começou bem, com novo nono lugar a correr em casa. Mas, à segunda prova, em França, chocou de frente (aqui ainda no sentido figurativo) com Emerson Fittipaldi, o então campeão mundial.

 

O brasileiro da Lotus tentou forçar a ultrapassagem mas Scheckter fechou-lhe a porta e acabou por provocar uma colisão entre os dois (aqui, sim, no sentido literal). Fittipaldi ficou furioso e foi discutir com o sul-africano nas boxes. «Começou com um grande monólogo sobre como os pilotos novatos não devem atrasar o campeão do mundo. Quando chegou ao fim, respondi-lhe que tinha tido 42 voltas para me ultrapassar e que faria o mesmo se voltássemos a estar na mesma situação.»

 

O descanso forçado e o momento de viragem

 

A figura de Scheckter tornou-se cada vez mais indesejada no circuito mundial e a participação no grande prémio seguinte, em Silverstone, só tornou as queixas ainda mais acesas, quando o piloto perdeu o controlo do McLaren e provocou um acidente em massa.

 

«Fui responsável pela desistência de nove carros. Todos os três carros do John Surtees tinham sido destruídos. Ele queria encontrar-me para me matar», recordou mais tarde. Scheckter sobreviveu mas a associação de pilotos exigiu à McLaren que tomasse uma posição. A consequência? Um «descanso» forçado durante quatro provas.

 

O piloto voltou a tempo das últimas duas provas do Mundial, mas não terminou nenhuma. Com acordo com a Tyrrell para a temporada de 1974, viu o futuro colega de equipa, François Cevert, com quem tinha colidido no Canadá, morrer à sua frente no último grande prémio da temporada, nos Estados Unidos.

 

«Vi metade do carro dele no meio da pista e o resto junto a um rail, todo dobrado. Saltei do carro e corri para junto dele, porque sabia que o perigo de incêndio era sempre muito grande nesta altura. A bateria estava a fazer faísca por isso tentei libertar-lhe o cinto de segurança. Assim que o vi, virei-me imediatamente e fui-me embora. Nunca saberei o que vi naquele cockpit», confessou.

 

A imagem foi tão traumatizante que Scheckter decidiu apagá-la da memória instantaneamente. «Foi a primeira pessoa conhecida que vi a morrer. Não conseguia acreditar que alguém tinha morrido e que os outros tinham continuado como se nada se tivesse passado. Subitamente, percebi que este era um mundo perigoso. A partir daí, tudo o que tentei fazer na Fórmula 1 foi salvar a minha vida», acrescentou em declarações à Motor Sports Magazine.

 

Metamorfose completa

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A transformação de Scheckter (na foto após o acidente de Cevert) enquanto piloto teve méritos repartidos na opinião pública. A passagem para a Tyrrell foi importante, bem como a relação com o dono e os engenheiros, mas o trauma continuou a subsistir no pensamento de Scheckter.

 

A velocidade a todo o custo foi substituída por uma abordagem mais pragmática. A mudança surtiu efeito e durante os três anos em que competiu pela Tyrrell só não terminou dez provas – três em 1974, três em 1975 e quatro em 1976. Pelo meio, estreou-se a vencer na Suécia-1974, conquistou 13 pódios e acabou no terceiro lugar do Mundial de pilotos em 1974 e 1976.

 

 A aventura seguinte, na Wolf, mostrou um piloto cada vez mais experiente e capaz de responder afirmativamente nos momentos decisivos. É certo que não acabou sete das 17 provas de 1977 mas, excetuando o décimo lugar a terminar o calendário no Japão, foi sempre ao pódio, fruto de três vitórias, dois segundos lugares e quatro terceiros postos. No final, foi vice-campeão mundial, atrás apenas do austríaco Niki Lauda.

 

O convite da Ferrari

 

Os resquícios do piloto perigoso praticamente já não existiam quando Enzo Ferrari recrutou o sul-africano durante a temporada de 1978. «Scheckter mostrou ser um inteligente conciliador das suas capacidades e do seu potencial, um homem que planeia as coisas com o resultado final na mente. Ou a segurança, não tenho a certeza.»

 

A abordagem era a correta. A experiência de Scheckter era cada vez mais decisiva e o ano de estreia pela equipa, em 1979, ficou marcado pelo título mundial. O Ferrari Flat-12 foi um exemplo de fiabilidade e a escuderia conseguiu os dois primeiros lugares, com Gilles Villeneuve a terminar no segundo posto, a quatro pontos de Scheckter.

 

«Nunca tinha precisado de alguém para me pressionar mas ter o Gilles como colega de equipa motivou-me para fazer ainda mais», reconheceu o sul-africano.

 

O título de 1979 marcou o fim de uma demanda pelo olimpo automobilístico. É certo que Scheckter ainda correu mais uma temporada com a Ferrari, mas o carro não evoluiu como se esperava e o sul-africano decidiu muito cedo que aquele seria o seu último ano.

 

«Já tinha feito o que queria fazer. Tinha havido acidentes e mortes, tinha visto gente a não se importar muito com isso. A magia da Fórmula 1 tinha morrido para mim. Por isso, em julho disse logo ao senhor Ferrari que queria parar e anunciei a decisão à imprensa.»

 

Tinha 30 anos. O balanço final demonstra que conquistou dez das 112 corridas em que participou e continua a ser o único piloto africano a conquistar o título de campeão mundial. E foi, até ao título de Michael Schumacher em 2000, o último piloto a terminar a época na liderança ao volante de um Ferrari.