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É Desporto

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06 de Abril, 2018

Futebol em Gibraltar. O fim da invencibilidade

Rui Pedro Silva

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Chegar lá pode ser um martírio, mesmo numa viagem por etapas, mas a recompensa é grande assim que se vê o destino. Num dos estádios com a vista mais bonita da Europa, há entrada gratuita e direito a dose dupla: depois de um Europa-Manchester, vemos o Lincoln Red Imps perder a invencibilidade no campeonato. No final, os quase 700 quilómetros de regresso só são atenuados pelo gasóleo premium a um euro por litro. 

 

Uma atração irresistível

 

A excentricidade pode ter um apelo irresistível mas ver futebol em Gibraltar nunca foi um programa que merecesse grande atenção. Ou melhor, nunca tinha sido sequer pensado, porque a partir do momento em que se equacionou a possibilidade de ver o Lincoln Red Imps, uma das duas equipas imbatíveis nos campeonatos europeus, difícil foi parar de programar uma viagem.

 

Ver o campeonato do extremo sul da Península Ibérica pode parecer estranho mas não é mais do que assistir a uma dose dupla em Malta ou a um Estónia-Gibraltar em Tallinn com o inverno a aproximar-se. A diferença é que a atração aqui era maior: o líder Lincoln Red Imps estava a ser cada vez mais falado devido à sua invencibilidade.

 

Os quase 1400 quilómetros de ida e volta chegam para assustar e há duas datas que nos saltam à vista: um jogo a 17 de março, que permita descansar antes do regresso, ou aproveitar o fim-de-semana de Páscoa para um jogo de domingo, indo com calma a partir de sexta-feira e regressando durante a madrugada de segunda.

 

Subitamente, tudo fez sentido. A data era perfeita porque na véspera, em Sevilha, jogava o Barcelona, a outra equipa invencível nos campeonatos nacionais da Europa. Seria uma dose dupla de extremos: em menos de 24 horas, passaríamos de um jogo com Messi, bilhetes a 100 euros e quase 40 mil pessoas para outro com entrada gratuita, menos de 100 pessoas e com… um português chamado Bernardo Lopes.

 

Volta a Gibraltar em 180 minutos

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O território britânico é único. A viagem pode ser cansativa mas compensa assim que lhe metemos os olhos em cima. O enorme rochedo, talismã de Gibraltar, percebe-se a quilómetros e quanto mais nos aproximamos, mais complicado se torna desviar os olhos daquele monte fumegante – pelo menos até a temperatura aumentar – que serve de miradouro para toda a região.

 

Entrar de carro pode ser um desafio de paciência mas a fila não é grande e o controlo de entrada faz rir: os passaportes não chegam sequer a ser abertos antes de termos autorização para arrancar. O insólito está apenas a começar: a entrada em Gibraltar faz-se atravessando a pista do aeroporto e, assim que chegamos ao lado de lá, temos o Victoria Stadium à direita. Fazemos uma primeira prospeção dos arredores, equacionamos lugares onde poderemos estacionar sem pagar e damos uma «volta ao rochedo» para conhecer melhor o ambiente.

 

O medo de apanhar demasiado trânsito à saída de Gibraltar, sobretudo num fim-de-semana prolongado, faz-nos decidir que a melhor alternativa é sair o quanto antes e reentrar a pé. Antes, porém, aproveitamos para atestar o depósito de combustível, aproveitando o gasóleo premium a um euro por litro.

 

Manchester vai à Europa?

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A ideia inicial era ver apenas o jogo do Lincoln Red Imps, às 19h00, mas o cansaço provocado pela subida (parcial) ao rochedo, antecipou a ida para o estádio a tempo de apanharmos o jogo entre o Europa FC e o Manchester 62, que tinha começado às 16h30, em andamento.

 

Chegámos a pensar que a entrada pudesse ser paga, ainda que de forma simbólica, mas não há sequer espaço para isso. A única coisa com que nos deparamos, na bancada central, é a existência de um cartaz que enumera os termos e condições do recinto.

 

Entramos ao mesmo tempo que vários jogadores do Mons Calpe, que iam defrontar o Lincoln Red Imps umas horas mais tarde, e a mente rapidamente divaga para os trocadilhos que se podem fazer com o nome das equipas em campo. Pensamos que o Manchester foi jogar à Europa mas, na verdade, como só há um estádio, nem se pode bem dizer que se está a jogar «fora». E mais, num território tão pequeno, é mais do que legítimo dizer que todos os jogos são dérbis.

 

O verde do sintético é berrante e chora por atenção mas, assim que nos sentamos, o espanto vai para outro lado. Não nos surpreende, já sabíamos, mas não deixa de ser impressionante estar numa bancada, a ver um jogo de futebol, e ter o enorme rochedo em segundo plano.

 

Ali, tudo parece surreal. Quando olhamos para a esquerda, vemos a pista do aeroporto, deserta e com pessoas a atravessarem a pé com relativa frequência. Quando olhamos para a direita, temos aquele fenómeno natural a piscar-nos o olho de tão emblemático que é.

 

Dentro de campo, percebe-se que o segundo está a jogar contra o último. De verde e preto, o Europa FC joga com brilho. Automaticamente, tentamos enquadrá-los no futebol português e perceber em que divisão poderiam jogar. É uma tarefa ingrata, mas a verdade é que a dinâmica com bola, a preocupação em jogar rápido, apoiado e com constantes movimentações surpreende. Mas pode sempre depender da réplica, ou falta dela, que o Manchester 62, reduzido a dez desde cedo na primeira parte, oferece.

 

Aperitivo melhor do que o prato principal?

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O intervalo do primeiro jogo provocou uma mudança. Decidimos ir para a outra bancada, paredes meias com a tal bomba de gasolina que surge logo nos primeiros 100 metros de Gibraltar, para aproveitar o sol a bater de frente.

 

Não é tão entusiasmante como ver constantemente o rochedo mas torna-se mais confortável, sobretudo num dia tão ventoso. Dentro de campo, o Europa FC caminha para uma goleada fácil e a hora do prato principal está cada vez mais próxima. Os outros invencíveis da Europa estão quase a entrar.

 

Quando desenhámos a viagem, pensamos em vários enredos. Julgámos que seria possível o Barcelona perder em Sevilha – e esteve tão perto de acontecer – e que fôssemos ver o Lincoln Red Imps como única equipa sem derrotas em campeonatos europeus.

 

O tiro não só nos saiu pela culatra como parece que não fomos os únicos a pensar assim. A atitude do Lincoln Red Imps em campo foi amorfa, com pouca vontade e digna de uma equipa desmoralizada. Será que eles próprios ficaram desiludidos com a reação do Barcelona que os impediu de ganharem ainda mais protagonismo na Europa?

 

Não perguntámos, não valia a pena. Mas foi o que nos pareceu. Contra o Mons Calpe, uma equipa do meio da tabela de um campeonato com dez equipas, o Red Imps sofreu cedo o primeiro golo do jogo e nunca conseguiu recuperar.

 

Com o português Bernardo Lopes a assumir um papel pendular no ataque da equipa – começou por jogar à frente da defesa mas com o desenrolar do jogo também passou por central e lateral direito numa defesa a três – o Red Imps não só não inverteu o rumo dos acontecimentos como pareceu sempre pior do que o Mons Calpe e com bastante menos qualidade do que o Europa FC.

 

Misto de emoções

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O Mons Calpe chegou a uma vantagem de três golos e, a cada festejo, os gritos pareciam mais entusiasmados. É certo que não é mais do que o campeonato de Gibraltar mas quem não queria ser responsável pela primeira derrota de uma das duas equipas ainda invencíveis do continente?

 

Na pista de atletismo, um pequeno apanha-bolas de palmo e meio sofreu pelo Lincoln Red Imps. Começou por vibrar com um ou outro lance de ataque, passou pela desilusão dos golos sofridos e pelos tímidos protestos num penálti não assinalado (falta existiu mas já tinha sido assinalado fora-de-jogo) e terminou com a resignação do resultado, sentado sem forças e com uma bola ao lado do corpo.

 

A história bonita tinha chegado ao fim. O Lincoln Red Imps não era mais invencível e tinha deixado o Barcelona como único detentor desse estatuto. O título continua à mão de semear – tem oito pontos de vantagem sobre o Europa FC – mas o mediatismo de ser campeão de Gibraltar não consegue competir com a fama de ser invencível a par com uma das melhores equipas do mundo.

 

O nosso enredo saiu ao contrário e a decisão de deixar o carro do lado espanhol acabou por ter um contratempo também. Assim que saímos da bancada – e pela primeira vez que nos tivéssemos apercebido durante todo o dia – um avião estava a aterrar e tivemos de esperar até podermos atravessar a pista e iniciar o regresso a casa.