Frazier vs. Ali. Muito mais do que um combate do século
Segunda-feira, 8 de março de 1971 no Madison Square Garden. O mundo parou (e o exagero nem é assim tão grande) para ver o combate do século. Um combate do século, vá, que os aficionados do pugilismo não são de meias medidas na altura de engrandecer as perspetivas de um duelo.
Mas este era especial. Pela primeira vez na história, dois pesos pesados iam discutir o título na condição de imbatíveis. De um lado estava Joe Frazier, com 27 anos, detentor do cinturão e com um registo de 26 vitórias consecutivas, com 23 knockouts, desde que tinha abraçado o profissionalismo após a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964. Do outro, estava Muhammad Ali, 29 anos, com 31 triunfos seguidos, com 25 knockouts, e o título em Roma-1960 para amostra.
O contexto desportivo seria suficiente para atrair a atenções de milhões de pessoas mas o enquadramento deste combate promoveu muito mais do que a luta por um estatuto. Muhammad Ali, que nesta altura já se recusava a responder pelo nome de Cassius Clay, tinha-se tornado uma figura polarizadora nos EUA, muito amado por uns e ainda mais odiado por outros. Joe Frazier, em muitas coisas, servia de contraponto.
A música de Rui Veloso faria pouco sentido neste duelo onde Frank Sinatra marcou presença como fotógrafo da revista Time. Era muito mais aquilo que os separava do que o que os uniam. Sim, tinham crescido e sobrevivido a um contexto de pobreza, eram afro-americanos, tinham enveredado pelo boxe e eram invencíveis. Mas as semelhanças terminavam aí.
Muhammad Ali era cáustico. Muçulmano. Defensor de causas sociais, figura da luta pela igualdade nos direitos cívicos e humanos e objetor de consciência. Tinha recusado o recrutamento para a Guerra do Vietname e não foi preciso muito até se tornar uma das vozes mais críticas perante o extremar do conflito.
Joe Frazier era cauteloso. Ponderado. Não exagerava, não tinha uma postura aberta, não transmitia opiniões sobre temas fraturantes. Não era necessariamente pró-guerra, mas tinha sido adotado por esse lóbi como figura de contrapeso às declarações de Ali. E tinha escapado à guerra por ser casado e com filhos.
A Guerra do Vietname estava a caminho da sua derradeira fase mas continuava a ser um ponto de grande debate. E o título mundial de pesos pesados estava associado diretamente à guerra. Apesar de Joe Frazier ostentar oficialmente o cinturão, Muhammad Ali não tinha chegado a perder qualquer combate desde que derrotou Sonny Liston em Miami, em 1964. Tinha «perdido» na burocracia, ao ser suspenso devido à sua posição perante o conflito na Indochina.
Depois de ter participado apenas em dois combates entre 1967 e 1971, Muhammad Ali era um homem à procura de vingança. A perspetiva de um combate entre estes dois pesos pesados ganhou um efeito simbólico incontrolável. Os bilhetes esgotaram no dia em que foram postos à venda, por valores a rondar os 150 dólares (equivalentes a cerca de 1000 em 2021), e foram trocados no mercado negro acima dos 600 dólares. Mais de 72 países adquiriram diretos de transmissão e um total superior a 400 salas de cinema na América do Norte, entre Estados Unidos e Canadá, retransmitiram o combate.
O dinheiro em cima da mesa também era inigualável. Cada pugilista recebeu 2,5 milhões de dólares à cabeça e o valor da lotação, superior a 20 mil pessoas, rendeu um milhão e meio. Mas apesar de tudo, do dinheiro e da simbologia, continuava a ser um combate de orgulho.
«Sou melhor no contra-ataque do que o Jack Johnson, mais rápido do que o Joe Louis, sou mais forte do que o Rocky Marciano e tenho melhores golpes do que o Jack Dempsey. O Frazier é um usurpador e vou oferecer-lhe, por etapas, uma viagem ao inferno», garantia Muhammad Ali, no seu estilo inconfundível.
Ali ia mais longe e até dizia como ia vencer: «Na primeira parte do combate, vou limitar-me a bailar à volta dele. Depois tenho uma surpresa reservada para limpar o ringue com os seus calções». O pré-combate tornara-se uma das especialidades de Ali e nem os antigos campeões, sobretudo os que atribuíam o favoritismo a Frazier, como Jack Dempsey e Joe Louis foram poupados: «Vivem na ignorância. Não sou apenas um pugilista – o melhor deles – mas também um representante dos povos oprimidos do mundo inteiro. E assim não há como perder».
Joe Frazier era mais moderado mas não fugia às provocações: «Assim que começar o combate vou tratar o meu rival pelo seu nome: Clay. Vai ficar furioso porque não suporta que lhe chamem outra coisa que não Muhammad Ali. Vai ficar tão nervoso que nem vai ver chegar o soco com que o vou pôr a dormir».
Ali e Frazier tiveram mais olhos que barriga. Ali prometia pôr-se de joelhos e arrastar-se pelo ringue a dizer que Frazier era o melhor se fosse derrotado mas garantia que não havia milagres no boxe. E, na verdade, Ali esteve mesmo no chão duas vezes, uma no 11.º assalto, outra no 15.º e derradeiro.
Não houve knockout. Joe Frazier mostrou estar mais fresco e mais bem preparado mas o triunfo só chegou após a votação unânime dos três juízes do duelo. A imprensa internacional, fortemente representada no Madison Square Garden, não poupou Muhammad Ali. Uma das agências de notícias escreveu que «o objetor de consciência já não é o que era, nem por sombras». «É uma caricatura daquele outro pugilista que dominava o ringue, tinha grandes golpes, um excelente jogo de pernas e reações fulminantes», continuava.
A conferência de imprensa após o combate não teve o que se esperava. Muhammad Ali falhou o momento devido a uma suspeita de fratura do maxilar, não confirmada, que o levou para o hospital. Assim, apenas Joe Frazier pôde falar aos jornalistas mais a frio.
«Ali chamou-me de preto e disse que me ia matar», queixou-se Frazier, apesar de garantir que desculpava Ali por tudo o que tinha dito antes do combate. «Subestimou-me. Devia estar louco para ir para as cordas e esperar os meus ataques. Não deixei que o Clay impusesse a sua distância. Ele é um pugilista clássico, académico, um pugilista tão contundente quanto preciosista. Por que haver de deixar que fizesse o que queria? Quando um profissional sobe ao ringue, é para fazer o que tem de fazer, não o que o adversário quer nem o que os espetadores esperam. Por isso fiz o meu combate, atacando-o desde o primeiro momento. E aí todos sabemos que o Clay esteve muitos meses parado, seria um grande desafio físico para ele. Não lhe podia dar um momento para respirar, eu estava muito bem preparado», disse.
Ali não esteve na conferência de imprensa mas, instantes após o combate, prestou declarações ao canal de televisão que transmitiu o combate. «Não tenho muito a dizer. O Frazier é um grande campeão e demonstrou-o durante todo o combate. Ninguém a não ser ele teria conseguido resistir ao conjunto de socos que dei durante os 15 assaltos», admitiu.
A derrota marcou Muhammad Ali. Caiu do seu pedestal, deixou de ser invencível, percebeu que não podia subestimar Joe Frazier nem voltar a entrar num ringue sem estar em perfeitas condições físicas. A desforra, pedida desde o primeiro momento, haveria de chegar. E aí, já acima dos 30 anos, venceu mesmo. Primeiro em 1974 e, finalmente, em 1975, no terceiro e derradeiro duelo entre os dois, disputado nas Filipinas e timbrado com o nome «Thrilla in Manila». Por esta altura, porém, o duelo já não provocava sensações tão extremadas. O conflito do Vietname estava no fim e Ali era cada vez mais reconhecido como uma figura importante, um herói, e não tanto como um transgressor sem um pingo de patriotismo.