Estónia-Gibraltar. Uma viagem à UEFA dos pequeninos
No dia do Portugal-Andorra e do Bélgica-Bósnia e Herzegovina, estive em Tallinn a assistir ao Estónia-Gibraltar. Chegar ao Mundial da Rússia não é mais do que um sonho mas nem por isso se deixa de viver o futebol com a mesma paixão.
Ver um jogo porque… calhou
Houve quem lhe tenha chamado doença. Houve quem tenha aproveitado para dizer que é estranho que alguém desapaixonado por futebol consiga, ainda assim, ter coragem para ir ver um Estónia-Gibraltar às 21h45 de uma sexta-feira. Depois, as bocas: as perguntas sobre se tinha perdido alguma aposta ou de quantos anos tinha apanhado (de castigo).
A resposta, com ajustes aqui e ali, rondou os mesmos pormenores. Um Estónia-Gibraltar é futebol em estado puro. Com pouca qualidade, ninguém o desmente, mas em estado puro. Aquele jogo, ignorado na Europa do futebol, representou, muito possivelmente, o ponto mais alto da campanha dos estónios (a maior goleada desde os 4-0 ao Luxemburgo em 2004).
E para Gibraltar? Na notícia da imprensa local, destacou-se o recorde de, pela primeira vez, a equipa ter ficado duas partes consecutivas sem sofrer golos (os últimos 45 contra a Grécia e os primeiros 45 contra a Estónia).
Foi a festa da UEFA dos pequeninos, por muito que a Estónia até tenha estado no play-off de apuramento para o Euro-2012. Deixa saudades? Não, talvez não deixe. Mas foi uma oportunidade única para ver como aqueles que não têm razões concretas para serem felizes no futebol vivem a modalidade.
A caminhada e os autocarros
Se havia fator desencorajador era o frio e a ameaça de chuva. O estádio, a famosa A. Le Coq Arena, ficava a mais de três quilómetros. Como o regresso seria a pé – com o jogo a acabar às 23h30 locais as ofertas de transportes são mais reduzidas – a ida seria da mesma forma, mais não seja para fazer reconhecimento do caminho.
Não chovia mas a temperatura que se sentia roçava o negativo. A estrada estava praticamente deserta a uma hora do arranque do jogo mas, ainda assim, ouviu-se uma sirene. “Será possível ser o autocarro de uma das seleções a ser escoltado?”, pensei, associando necessariamente ao de Gibraltar, uma vez que era branco e completamente descaracterizado.
Minutos depois, novamente as sirenes. Uma mota da polícia a bater o caminho, um carro logo atrás e finalmente o autocarro, com um cachecol da “Eesti” na frente. Agora sim, tudo batia certo.
Ao chegar ao estádio, com uma hora e meia de antecedência, a movimentação era muito pouca. A bilheteira tinha quatro pessoas, todas do lado de lá. A comprar, apenas eu. Já sabia que a entrada custava 14 euros mas ainda assim não deixou de ser surpreendente o momento em que uma mulher me mostrou a planta do estádio para escolher exatamente onde queria ficar, tal e qual como se faz no cinema.
Central coberta, topo coberto, topo descoberto, primeiro ou segundo “anel” era indiferente. O preço era o mesmo.
A entrada no estádio só se fez depois de uma pequena volta. O suficiente para entrar na loja – com as camisolas de todas as equipas da primeira divisão estónia expostas – e perceber que, após desconto, a camisola da seleção podia ser comprada por 42 euros. Continuando a volta, dei de frente com a zona mista, uma tenda improvisada com cinco ou seis grades, cujo acesso parecia estar à mão de semear para qualquer adepto.
Um balneário pouco privado
Faltava uma hora para o apito inicial, por isso foi sem surpresa que as bancadas estivessem praticamente desertas quando entrei. Ainda assim, persistia a dúvida: com aquele tempo, contra aquele adversário, que tipo de assistência teria o jogo? E haveria adeptos de Gibraltar? A brincar, passou-me pela cabeça garantir uma entrada direta para o Watts, ficando sozinho numa bancada a gritar pela seleção do rochedo.
A passagem dos minutos serviu para perceber as características do recinto. Num dos cantos, uma pequena indicação com o marcador (que viria a ser atualizado com quatro a cinco minutos de atraso). No topo descoberto, estavam as bandeiras, com a de Gibraltar a ser mais ou menos um terço de todas as outras. No topo mais próximo, as várias bandeiras e cartazes, ainda sem adeptos, mas que já aguardavam os jogadores.
Imediatamente por baixo, nos balneários, algo chamou a atenção. Do outro lado do vidro (segunda e terceira janelas a contar da esquerda na foto), três homens conversavam como se nada fosse. Era o balneário dos árbitros. Ali, em plena descontração e com privacidade zero. Havia uma persiana para fechar mas não os pareceu incomodar. Deu para perceber a entrada dos delegados, as camisolas de equipamento a serem vestidas, as gargalhadas, os sorrisos.
Por essa altura, já os guarda-redes da Estónia se preparavam para entrar. Não deviam estar mais do que vinte pessoas nas bancadas quando começou o aquecimento mas ainda assim Mihkel Aksalu, o titular, fez questão de cumprimentar e aplaudir quem já estava sentado. Com ele, Mart Poom.
Os mais novos talvez não o saibam mas Mart Poom é uma figura incontornável da Estónia. Internacional entre 1992 e 2009 faz parte de uma das minhas primeiras memórias da seleção, em 1993, no estádio da Luz. Portugal precisava de vencer a Estónia por 4-0 para facilitar as muito difíceis contas no acesso ao Mundial. A tarefa era complicada mas logo no arranque, Paulo Futre, à Futre, fez um slalom entre adversários e rematou ao ângulo.
Não foi o primeiro golo que vi da seleção mas quase de certeza o primeiro “grande golo”. E foi Mart Poom que o sofreu. Vinte e quatro anos depois, ali estava ele à minha frente, a fazer o aquecimento a Aksalu.
O que dizem os teus aquecimentos?
A versão mais antiga de observação de adversários centrava-se nos aquecimentos, fosse na formação ou no futebol profissional. Era aí que se percebia se os adversários eram grandes, se o guarda-redes se safava nos cruzamentos, se o melhor jogador era titular…
Hoje quase não há segredos mas os aquecimentos continuam a conseguir dizer muita coisa. Uma delas é o grau de profissionalismo e preparação. Enquanto de um lado os estónios simulavam lances de finalização sem oposição – apesar de não terem grande requinte e nunca com envolvimento dos laterais ou com desmarcações nas costas -, os gibraltarinos pareciam uma equipa de infantis: dez jogadores em fila no meio-campo à espera da vez para poderem tabelar com um adjunto e rematar à baliza.
Foi também nessa altura que reparei na ironia de o guarda-redes de Gibraltar, um território britânico, ainda bater a bola “à inglesa” (rematá-la no instante seguinte a cair no chão). No jogo, contudo, só o fez até aparecer a primeira rosca diretamente para o banco de suplentes.
Um primeiro-ministro e um presidente pop star
O apito inicial estava cada vez mais próximo e as bancadas mostravam isso mesmo. Com cada vez mais gente, surgiram também no relvado dois homens e uma criança. Segundos depois de terem sido aplaudidos pela bancada, um estónio ao meu lado, diz-me qualquer coisa impercetível.
Peço para repetir. Fá-lo em inglês. Aponta-me para aquele grupo e diz que é o primeiro-ministro, não escondendo o orgulho. A partir daí, a conversa desenrola-se e pergunta-me de onde sou.
- Portugal.
- Estiveram muito bem no Europeu. Parabéns pelo título.
- Obrigado.
- Então e Portugal não joga hoje?
- Joga, joga com Andorra.
- Ah, vai ser uma grande vitória.
- Nunca se sabe, nunca se sabe [digo, sabendo que não valerá a pena explicar-lhe o fado português e a tendência de Fernando Santos].
- Vai, vai. Não é preciso ser tão humilde.
Depois dos hinos, o primeiro-ministro entra no relvado para cumprimentar os jogadores das duas equipas. O problema é que não sabemos quem é, na verdade, o primeiro-ministro. Pensamos ser o excêntrico, de cabelos longos e brancos, com barba a condizer, e não o “jovem” com uma criança de mão dada.
Mesmo assim, estranhamos que esse barbudo, esse “primeiro-ministro”, seja tão ovacionado no regresso. Parece demasiado popular. Olha para a bancada, cumprimenta as pessoas e pede palmas. E elas correspondem. Depois faz o mesmo para o topo coberto, quase cheio.
Será tudo orgulho nacionalista? Nem por isso. Nessa noite, chegado ao hotel, a obrigatória pesquisa, faz-nos perceber que o “jovem” é, na verdade o primeiro-ministro: Taavi Roivas, nascido em 1979 e no cargo desde 2014.
Quem será então o mais popular? Durante muito tempo desconfio que seja um artista pop qualquer, um Estónio Carreira desta vida que faça as delícias da população. Mas não encontro qualquer referência até encontrar no twitter um jornalista que tenha estado no estádio, Raul Ojassaar.
«É o presidente da nossa federação de futebol, Aivar Pohlak», responde-me.
Aproveito o balanço e satisfaço outra curiosidade: durante o jogo, o speaker por duas vezes disse algo que levou a grandes aplausos. «Terão sido os golos das Ilhas Faroé na Letónia?».
A resposta não é conclusiva: «Ah, pode ter sido. Como estava a chover muito, recolhi para o interior para não estragar o meu portátil, por isso não ouvi nada. Mas somos vizinhos, temos uma história muito semelhante, temos praticamente o mesmo tamanho. Não é muito acesa mas não deixa de ser uma rivalidade».
RPS