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É Desporto

É Desporto

15 de Julho, 2022

Está quase na altura de mudar de página

Rui Pedro Silva

Tiger Woods

Os livros não são todos iguais. Agarram-nos de maneira diferente e se uns persistem para sempre nas nossas vidas, há outros que não nos conseguem fazer sequer ultrapassar os primeiros capítulos. Os Maias, de Eça de Queiroz, é um bom exemplo disso. Ainda ontem, num daqueles grupos de amigos nas redes sociais para comentar desporto, apareceu uma referência a esta obra de leitura obrigatória (para alguns) durante o ensino secundário. «Só li o resumo. Nunca passei da descrição da casa, que eram os primeiros 73 capítulos.»

Sim, o livro tem um início demasiado mastigado mas o que me ficou na memória foi a parte do passeio final já, como o nome indica, no final do livro. A vida não é muito diferente. Somos arrastados para os mesmos momentos e saímos de lá com experiências e recordações diferentes. No mundo do desporto, estamos à beira de terminar um dos capítulos mais relevantes na história. Está quase na altura de mudar de página e, ao contrário da descrição da casa, este parece estar a provocar mais emoções ao nível do passeio final. Porque, na verdade, estamos a assistir a demasiados passeios finais nas várias modalidades.

Tiger Woods saiu em lágrimas do British Open, antevendo a eliminação no cut num dos quatro majors da temporada. Tiger tem 46 anos, venceu o seu primeiro grande torneio em 1997 e tornou-se uma figura indissociável do golfe. Há muito que se sente que o auge já passou, mas tem resistido a ventos, marés e tempestades (ou polémicas e lesões, se preferirem), para se evitar o naufrágio. Quando ganhou o Masters em 2019, abrilhantou esta página.

Mas Tiger Woods não é o único. Roger Federer mantém-se na sombra mas a final perdida em Wimbledon em 2019 pareceu ser o último grande cartucho da sua carreira. Rafael Nadal e Novak Djokovic continuam a ganhar grand slams mas já têm 36 e 35 anos. E Serena Williams tem 40. E Cristiano Ronaldo e LeBron James têm 37. E Messi tem 35. E Lewis Hamilton 37.

Talvez esta não seja a melhor era na história do desporto mundial. Talvez Hamilton não seja o melhor piloto na história, talvez LeBron James não esteja sequer no top-3, talvez a rivalidade Borg-McEnroe seja melhor que este monstro de três cabeças do ténis mundial. Talvez Tiger Woods não tenha sido assim tão importante, Serena Williams não tenha passado de um eucalipto no ténis feminino e Messi e Ronaldo uma imitação fraca da rivalidade em diferido entre Pelé e Maradona.

Talvez alguém consiga acreditar em cada uma destas coisas e em todas elas juntas. Difícil é desvalorizar a importância desta era e aceitar que, de facto, está prestes a acabar. Estou certo de que há grandes nomes a aparecer, que Tadej Pogacar é um fenómeno no ciclismo, que Max Verstappen e Charles Leclerc se sentem prontos para assegurar a passagem de testemunho, que Carlos Alcaraz e companhia querem disputar a hegemonia da próxima década, mas o que estamos a acabar de ler nesta página não se constrói num piscar de olhos.

Messi e Ronaldo são os jogadores com mais Bolas de Ouro. Entre eles têm doze distinções e ainda nove edições da Liga dos Campeões, para além de mais de 1500 golos. A nova geração até pode chegar a esse ponto, mas teremos de esperar pelo menos uma década até atingirem algo próximo, se é que alguma vez voltará a acontecer. E o mesmo se pode dizer sobre o ténis, a Fórmula 1 e o golfe.

Os recordes foram feitos para serem batidos mas não têm de surgir imediatamente uns a seguir aos outros. Será possível imaginar haver novamente três tenistas contemporâneos capazes de atingir os 20 grand slams na carreira? Uma rivalidade como a de Ronaldo e Messi? Uma atleta como Serena Williams? Uma figura pioneira e hegemónica como Tiger Woods? Um basquetebolista com a longevidade e capacidade de fazer a diferença não só na dinâmica dentro de campo mas também fora dele como LeBron James? Um piloto com os resultados de Lewis Hamilton?

É ingénuo pensar que todos estes feitos vão permanecer intocáveis. Vai acabar por acontecer. É o que a história nos demonstra. Mas nunca até o início do século XXI e provavelmente *nunca* a partir daqui teremos tantos desportos com períodos de reinado intocável com «os melhores de sempre» como agora.

O problema – o nosso, não o deles – é que este agora é cada vez menos um hoje e cada vez mais um amanhã. Está a chegar a hora de mudar a página. E o capítulo está a chegar ao fim. Como em tantos livros que vamos lendo durante a vida, sentimos a tentação de parar o tempo, de ler mais devagar, de parar a leitura. Para assistir a cada momento, para absorver cada palavra com o sentimento com que foi escrito. Dá vontade de não mudar de página, de imaginar o que poderia ter sido se o mundo parasse de girar e estes atletas durassem para sempre.

Não é isso que vai acontecer. A página muda-se sozinha e não há nada que possamos fazer a não ser aproveitarmos cada instante. E ansiar pelo incerto, pelos diamantes que estão prestes a brotar no desporto mundial e que um dia darão entrevistas como superestrelas a dizer que foram influenciados por este livro, por este capítulo, por estas palavras, por estas figuras que poderão terminar a carreira mas serão recordados para sempre como os melhores.

A descrição da casa já lá vai. Agora todos merecem ter um passeio final que lhes faça jus.