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É Desporto

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14 de Agosto, 2017

Eduard Streltsov. Só um gulag prendeu o génio de Moscovo

Rui Pedro Silva

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Tomou a União Soviética de assalto dentro e fora de campo a partir dos 16 anos. A fama e a vida boémia incomodaram o Kremlin e acabou condenado a doze anos de prisão na sequência de uma alegada violação em vésperas do Mundial-1958. Foi um Best antes de Best com talento para ser um Pelé.  

 

Chegar, ver e vencer

 

Streltsov. Streltsov. A própria fonética do nome parece dar uma força e magia especial ao futebolista que hoje podia ser recordado ao lado de Lev Yashin como o melhor de sempre a representar a União Soviética.

 

O Aranha Negra faz parte do imaginário de todos os apaixonados pelo futebol mas Eduard Streltsov, nascido a 21 de julho de 1937 (oito anos depois de Yashin), não tem a mesma sorte. Não deixa de ser considerado «o melhor jogador de campo» na história da União Soviética, mas podia ter chegado ainda mais longe, não se tivesse tornado tão incómodo aos olhos do regime.

 

A história começa por correr muito bem. Talento precoce, começa a dar nas vistas aos 13 anos numa fábrica. Um dia, ao defrontar uma equipa dos escalões de formação do Torpedo Moscovo, faz com que se torne impossível de não recrutar.

 

Logo ele, um adolescente de 16 anos apaixonado pelo Spartak, destinado a representar o Torpedo. Aí, em 1953, Streltsov começava a anunciar-se como um enorme talento. Era novo, mas isso pouco interessava. Era bom. Conseguia fazer o que os outros não faziam, via círculos onde estavam retas e atalhos onde outros pensavam em engarrafamentos.

 

O impacto foi imediato. Tornou-se o jogador mais novo de sempre a marcar no campeonato soviético, ainda antes de fazer 17 anos, e estreou-se pela seleção em 1955, com três golos à Suécia, a poucos dias de completar 18 anos.

 

Jogos Olímpicos de Melbourne

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Em 1956, quando representou a União Soviética nos Jogos Olímpicos de Melbourne, já tinha construído um nome forte dentro de muros. Mas numa era em que as fronteiras eram tão fechadas e as competições europeias estavam apenas a dar o primeiro passo – sem a presença de equipas soviéticas -, foi preciso voar até à Austrália para se apresentar ao mundo.

 

Numa equipa que tinha estrelas como Lev Yashin e Salnikov, Streltsov foi um dos maiores responsáveis pela caminhada até à final, ganha à Jugoslávia por 1-0. No encontro anterior, com a Bulgária, a União Soviética foi forçada a disputar o prolongamento só com nove jogadores em campo. Quando o adversário marcou, tudo pareceu cair por terra, mas Streltsov construiu a reviravolta com um golo aos 112 minutos e uma assistência para Tatushin aos 116.

 

A final foi uma miragem para Streltsov. O selecionador decidiu alterar a dupla de ataque e o jovem adolescente viu o jogo decisivo do lado de fora. Como na altura o Comité Olímpico só atribuía medalhas a quem disputava a final, Streltsov ficou de fora e rejeitou a oferta de um colega de equipa. «Não quero, hei-de ganhar muitas medalhas ainda», terá dito.

 

O mundo acordou para Streltsov e a votação para a edição inaugural da Bola de Ouro, em 1956, comprovou isso mesmo, com o russo a conquistar dois pontos. Um ano depois, foi o sétimo mais votado com 12 pontos. Ficou atrás de Di Stéfano (Real Madrid), Billy Wright (Wolverhampton), Duncan Edwards (Man. United), Raymond Kopa (Real Madrid), Laszlo Kubala (Barcelona) e John Charles (Juventus).

 

O ano em que tudo mudou

 

Eduard Streltsov parecia ter o mundo na mão. Ainda só tinha vinte anos mas já era uma das figuras mais imponentes do desporto soviético. Dentro de campo, era uma lenda e admirado por todos. Fora de campo, era um chamariz de fãs, mulheres e curiosos. Mas um agente incómodo para o Kremlin.

 

Era demasiado famoso. A política soviética achava Streltsov incontrolável e tinha medo do que podia representar a vida de excessos ou uma eventual deserção para jogar num campeonato europeu com outras condições. Era alguém no bloco oriental a viver como se estivesse no ocidente.

 

A gota de água foi, ainda assim, a afronta à primeira deputada na história do Politburo. Entre as inúmeras conquistas amorosas do futebolista, estava a filha de Ekaterina Furtseva, e, durante uma festa, Streltsev terá menosprezado a importância da relação, garantindo que o casamento nunca estaria em cima da mesa, referindo-se à filha de Furtseva em termos menos próprios. A frase não ficou esquecida...

 

Eduard Streltsev foi George Best mesmo antes de haver George Best. O talento para o futebol era inegável, mas as extravagâncias desviaram-no do caminho. Numa dessas vezes, em pleno estágio da União Soviética para o Mundial-1958, juntou-se com mais dois colegas a uma festa organizada por um militar soviético.

 

Foi o maior erro da sua vida. Um dia depois estava a ser acusado de violar Marina Lebedeva, de 20 anos, e com o futuro em risco. Disseram-lhe que podia continuar a jogar se se declarasse como culpado e cedeu, ignorando que estava prestes a ser condenado a doze anos de prisão no gulag de Vyatlag, no Oblast de Kirov.

 

As provas não eram conclusivas e os testemunhos eram confusos mas a justiça soviética não tremeu. A ordem vinha de cima, do próprio secretário-geral do Partido Comunista, Nikita Khrushchev, que era bastante amigo de… Ekaterina Furtseva. As teorias da conspiração foram rápidas a surgir e resistem, quase 60 anos depois.

 

Uma vida interrompida

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O sonho de participar no primeiro Mundial da sua carreira morreu ali. Não só foi preso como foi banido da possibilidade de voltar a ser profissional na União Soviética. No gulag, os primeiros tempos foram ainda mais difíceis, depois de ter lutado pela vida após uma bárbara agressão.

 

A União Soviética fora eliminada nos quartos-de-final dos Mundiais de 1958 e de 1962. O Torpedo Moscovo, órfão da sua principal estrela, sagrara-se campeão soviético pela primeira vez na história em 1960.

 

Streltsov continuava preso. E assim esteve até 1963, saindo sete anos antes do final da pena. O mundo que encontrou estava diferente, ele próprio já não era o mesmo. Impossibilitado de jogar futebol profissional, recomeçou a jogar pela equipa da fábrica, a mesma que o tinha visto nascer com apenas 13 anos.

 

A novidade propagou-se por Moscovo e os jogos tinham cada vez mais adeptos, ávidos de voltar a ver o génio de Streltsov com uma bola de futebol. Ao mesmo tempo, a pressão para que pudesse voltar a jogar era cada vez maior. Numa primeira fase, o pedido foi recusado mas o perdão chegou mesmo quando Khrushchev foi substituído por Brezhnev.

 

Regresso com cereja no topo do bolo

 

O estilo de Streltsov não era o mesmo mas continuou a ser suficiente para fazer a diferença nos estádios soviéticos. Na época do regresso, em 1965, conduziu o Torpedo Moscovo ao segundo título da sua história.

 

A União Soviética também voltou a contar com ele mas só depois do Mundial de Inglaterra, onde alcançou um brilhante quarto lugar, perdendo com a RFA na meia-final e com Portugal no jogo de atribuição do terceiro lugar.

 

Foi também a altura para a estreia em competições internacionais. Em setembro de 1966, na Taça dos Campeões Europeus, o Torpedo foi eliminado pelo Inter à primeira, mas na época seguinte o clube atingiu os quartos-de-final da Taça das Taças, numa campanha que contou com três golos de Streltsov.

 

O final da carreira estava cada vez mais próximo mas ainda foi a tempo de ser eleito o melhor jogador da União Soviética em 1967 e em 1968. Finalmente, em 1970, decidiu que era altura de colocar um ponto final. Tinha 33 anos, 105 golos em 237 jogos pelo Torpedo e 25 golos em 38 jogos pela seleção.

 

Em 1990, morreu de cancro na garganta, uma doença que tanto foi associada à vida de excessos, sobretudo o tabaco, como à qualidade da água no gulag. Seis anos depois, o estádio do Torpedo passou a ter a denominação oficial de Eduard Streltsov e a lenda tornou-se imortal.

 

Os responsáveis pela sua prisão nunca contaram toda a verdade mas a consciência popular tem vindo a apontar cada vez mais num sentido: Streltsov foi incriminado e impossibilitado de alcançar todo o seu potencial.

RPS