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É Desporto

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30 de Setembro, 2016

David Ortiz. A última página de uma rivalidade histórica

Rui Pedro Silva

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Outubro de 2004 tornou-o o pesadelo dos Yankees e desde então os jogos com os Boston Red Sox nunca mais foram os mesmos. O último adeus, com direito a homenagem e a uma inédita ovação, foi esta quinta-feira. 

 

O conflito entre herói e vilão

 

«A hero is only as good as his villain» é uma famosa citação que faz sentido no desporto. Os dois andam de mãos dadas: quanto melhor for um, melhor necessariamente será o outro. Para David Ortiz, ter os New York Yankees do outro lado desta relação é o maior atestado de qualidade que lhe podem dar.

 

Não interessa se o veem como herói ou como vilão. Em Boston, é uma figura mítica. Em Nova Iorque, foi odiado. E com razão, dos dois lados.

 

Com 40 anos, o jogador da República Dominicana está a cumprir a sua última temporada na MLB. Os Red Sox venceram a Divisão Este da Liga Americana e seguem para os playoffs, os Yankees desiludiram e ficaram pelo caminho. Por isso, o jogo da madrugada de quinta para sexta-feira, em Nova Iorque, foi a última vez que herói e vilão se defrontaram.

 

Não foram poucas vezes. Entre 1997 e 2016, Ortiz teve os Yankees do outro lado em 256 jogos – 238 ao serviço dos Red Sox (14 nos playoffs), 18 pelos Minnesota Twins.

 

Os números são esmagadores. Nos 242 jogos jogos da fase regular, Ortiz foi chamado a bater 893 vezes, conseguindo 271 hits, 75 doubles, 53 home runs e contribuindo para 171 pontos. Além disso, chegou à base através de bolas em 141 ocasiões.

 

Como contextualizar? Qual foi a equipa contra a qual conseguiu mais hits? Os Yankees. E doubles? Os Yankees. No capítulo de home runs, só Toronto Blue Jays (61) e Baltimore Orioles (56) surgem à frente. A diferença é que a rivalidade não é a mesma.

 

Outubro de 2004, o mês em que tudo mudou

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Os Red Sox não eram campeões há 86 anos. No mesmo período, os New York Yankees tinham vencido 26 títulos. Além disso, persistia o fantasma da Maldição do Bambino, que tinha mudado radicalmente o destino das duas equipas a partir do momento em que o proprietário dos Red Sox aceitou enviar Babe Ruth com os Yankees, a troco de uns milhares de dólares para financiar um musical que viria a ser um fracasso.

 

Na noite de 17 de outubro de 2004, a supremacia de Nova Iorque tinha tudo para se consumar. Os Yankees tinham vantagem na série de 3-0 e jogavam em Boston para fechar a final e garantir o apuramento para a World Series. Os números eram esmagadores: nunca na história uma equipa tinha recuperado de uma desvantagem de 0-3 em jogos.

 

Mas aí, já depois da meia-noite, os Red Sox começaram a fazer história, sempre com Ortiz em destaque. O primeiro dos quatro jogos da reviravolta foi decidido com um home run de David Ortiz no 12.º inning.

 

Na noite seguinte, no 14.º inning e novamente depois da meia-noite (importa notar que um jogo tem apenas nove innings regulamentares, prolongando depois enquanto houver empates), um single de David Ortiz voltou a resolver o jogo.

 

No terceiro jogo, já em Nova Iorque, Ortiz teve uma atuação discreta, mas no dia história, em que a reviravolta se concretizou, foi o dominicano a mostrar o caminho, com um home run na primeira vez que foi chamado a bater. Era o nascimento de uma lenda.

 

Maldição com maldição se paga?

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Esse jogo sete em 2004 da final da Liga Americana foi a última vez que as duas equipas se defrontaram num jogo dos playoffs. Desde então, os Red Sox foram campeões três vezes (2004, 2007 e 2013) e os Yankees apenas uma, em 2009. Em todos os títulos, David Ortiz assumiu uma posição de destaque a cimentou o seu lugar na história em Boston.

 

Por falar em cimento, também em Nova Iorque esteve em destaque, mas em 2008. Na construção do novo estádio, inaugurado em 2009, ficou famosa a ideia peregrina de Gino Castignoli, um adepto dos Red Sox que queria vingar a maldição de Babe Ruth.

 

Trabalhando na construção civil, achou que nunca iria aceitar trabalhar no novo estádio dos Yankees. Até ter decidido que iria deixar uma camisola de Ortiz no meio do cimento, amaldiçoando a equipa dessa forma.

 

Não resultou. Ou melhor, não durou muito tempo. Depois de contar aos colegas de trabalho, a notícia chegou aos responsáveis dos Yankees. A decisão foi voltar a destruir a secção à procura da tal camisola, perfurando dois metros de cimento num trabalho de cinco horas à procura da camisola.

 

«O meu ato não provocou qualquer dano estrutural e não coloquei ninguém em risco», defendeu-se Castignoli das ameaças de processo dos Yankees, prometendo mesmo que não se voltaria a aproximar do estádio, «nem em troca de todos os cachorros-quentes do mundo».

 

A camisola acabou por ser leiloada em Boston e rendeu 175 mil dólares ao instituto Dana-Farber, para a prevenção e luta contra o cancro.

 

Admiração mútua

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O último capítulo da rivalidade entre David Ortiz e os Yankees foi marcado pelo reconhecimento mútuo. No último jogo, o dominicano foi das poucas figuras que o treinador John Farrell não poupou. Na primeira vez que foi à base, acabou eliminado por strikes. Na segunda, ganhou a base por bolas e foi substituído, provocando uma inédita ovação a um adversário no Yankee Stadium.

 

«Não me lembro de alguma vez ter acontecido», explicou o jogador de 40 anos que, antes do arranque da partida, tinha recebido um livro com mensagens de atuais e antigos jogadores dos Yankees e uma pintura com a imagem dele a despedir-se no Yankee Stadium.

 

«Foi impressionante. Não houve vaias. Parece que está toda a gente contente por me estar a ir embora», brincou.

 

A verdade é que David Ortiz também é o que é muito por culpa do seu rival. Por esse mesmo motivo, deixou uma mensagem de agradecimento no The Players’ Tribune durante a semana.

 

«Tenho de admitir uma coisa. Tenho amor por vocês. É só um pouco, mas tenho», começou por dizer. «Foi a nossa rivalidade com os Yankees que fez de mim quem sou. A intensidade da competição é o que o que vou sentir mais a falta. Podia acordar de manhã completamente morto que era a ideia de que ia defrontar os Yankees que me dava adrenalina».

 

«Há jogadores que dizem que nasceram para jogar nos Yankees. Sabem o que eu acho? Eu nasci para jogar contra os Yankees», escreve.

 

«Obrigado, adeptos dos Yankees. A sério, obrigado. Vocês souberam tirar o melhor de mim. Quando me assobiavam, era uma das melhores sensações do mundo.»

 

RPS