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É Desporto

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04 de Outubro, 2016

Como me desapaixonei pelo futebol

Rui Pedro Silva

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Da guerra familiar para ver um Farense-Sp. Braga, com seis anos, ao desencanto com a overdose de futebol e com o acicatar de guerras que se tornaram um lugar-comum em Portugal. O caminho foi longo, mas sempre a descer, e a trajetória parece irreversível. Porquê? Tudo à volta mudou.

 

Novembro de 1991

 

Não vou mentir: ainda gosto (muito) de futebol. Claro que gosto, como é possível não gostar? Mas já não é o mesmo. Já não é capaz de me criar o bichinho na barriga e obrigar-me a fazer a contagem decrescente dos dias ou das horas até ao apito inicial.

 

A culpa também é minha, acho. Cresci, criei outros interesses e tirei-lhe importância. Aprendi a gostar de outras modalidades e encontrei nelas aquilo que o futebol já não me conseguia dar. E mais: não tinham aquilo que o futebol me obrigava a ver.

 

Aquela noite de sábado de novembro de 1991 parece cada vez mais distante. A RTP2 ia transmitir o Farense-Sp. Braga (o Farense-Sp. Braga!) e a caminho de casa depois de uma tarde passada sei lá onde (a memória é muito seletiva), a discussão no carro foi a mesma das semanas anteriores.

 

Eu, um miúdo de seis anos, queria ver o futebol e pouco me interessava que fosse um Farense-Sp. Braga ou um Benfica-Sporting. O meu pai era neutro na guerra (sempre foi mais de basquetebol), enquanto a minha mãe e irmã mais velha diziam-me, por outras palavras, para tirar o cavalinho na chuva. Estávamos a 200 metros de casa. E eu não desistia. Devo ter sido tão insistente que os meus pais perceberam naquela altura que não valeria a pena continuar a adiar uma decisão que viria a fazer muita diferença: comprar uma segunda televisão.

 

Houve tempo para tudo. Ir comprá-la (diria que foi na Makro mas, lá está, a memória é seletiva e hoje em dia não estou a ver a Makro como vendedora de televisores), trazê-la, colocá-la no quarto (dos pais) e sintonizar os canais. Plural porque havia RTP1 e RTP2 (na altura talvez se chamasse Canal 2, está sempre a mudar). A SIC e a TVI ainda não apareciam no horizonte.

 

A qualidade não dava para mais e o São Luís em Faro mais parecia o cenário do Assalto ao Aeroporto, com muita neve e pouca visibilidade. Não interessa. Na altura, era um luxo. Não havia HD nem tecnologia de bolso. Havia, sim, a vontade de ver e aproveitar cada oportunidade para ver futebol na televisão.

 

Ficou 3-1. Essa lembro-me de borla. Mas aproveito as “memórias da internet” para ver que o Farense, treinado por Paco Fortes, jogou com Lemajic, Portela, Luisão, Stefan, Eugénio, Miguel Serôdio, Sérgio Duarte, Pitico, Hajry, Ricardo e Djukic. E o Sp. Braga, de Carlos Garcia, tinha Luís Manuel, Carvalhal, Moroni, Sérgio, Carlitos, Eusébio, João Mário, Fernando Pires, Forbs, Chiquinho Carlos e Chiquinho Conde.

 

Não sou só eu, também és tu

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Este episódio faz 25 anos no próximo mês. E é assustador pensar nisso porque leva a duas conclusões tristes: primeiro, estou velho. Ninguém deve ter memórias com 25 anos e sentir-se bem com isso. Segundo, tudo mudou... radicalmente.

 

O futebol já não é o mesmo. Pode ser melhor, mais profissional, mais bem jogado e com muito melhores condições, mas houve qualquer coisa que se perdeu pelo caminho, além da minha ingenuidade.

 

Talvez se tenha vulgarizado. Antigamente, cada oportunidade de ver futebol na televisão tinha de ser batalhada com unhas e dentes. Eram poucas. Hoje, é possível passar as 48 horas do fim-de-semana a ver futebol (nem sempre em direto), de seis ou sete campeonatos diferentes.

 

O modelo de negócio mudou e percebeu-se que o futebol é cada vez mais a vaca leiteira no mercado nacional. E tem vindo a ser ordenhada até ao tutano pelos canais de televisão. Há futebol em tudo o que mexe, há discussão sobre a polémica em tudo o que respira, há bocas e pseudo rivalidades alimentadas pelas audiências sempre que há decisões a tomar.

 

Overdose de futebol

 

Há uma overdose de futebol que satisfaz alguns mas que me fez sair da carruagem. Não consigo, é demasiado. Há sempre muito em jogo e o passado já nos mostrou, de uma forma ou de outra, que há dirigentes capazes de tudo para ganhar uma vantagem competitiva.

 

E aqui é como a traição. Basta ter sido conhecido um telefonema, uma pressão, uma transferência bancária, uma detenção à saída do relvado para eternizar a suspeita. Se já aconteceu uma vez, por que não acontecerá uma segunda? Por que não terão acontecido muitas outras antes? Em 1991 também existiria, não sou ingénuo hoje ao ponto de pensar que não, mas na altura era. E era feliz com isso. Conseguia concentrar-me no futebol apenas no que se passava em campo e construir uma muralha em torno de tudo o que não interessava.

 

Hoje é impossível fugir. Na altura, só na segunda-feira é que havia discussão com os colegas. Agora, ainda o jogo não começou e já as redes sociais são inundadas de suspeitas e bocas que confundem doença com rivalidade. Não me levem a mal: sou completamente a favor da rivalidade, mas há quem ande a desvirtuar o significado da palavra e leve os outros atrás.

 

É neste universo de desconhecidos, dos amigos dos amigos, dos conhecidos e dos que nos passam à frente dos olhos por acaso que a rivalidade se está a transformar. Antigamente, alimentávamos a rivalidade com pessoas que conhecíamos de facto. Hoje, o alvo é muitas vezes um desconhecido: alguém capaz de irritar e estar no pensamento de cada vez que a equipa não está a ganhar. Só pode ser essa pessoa o alvo do “chupa!”, do “toma!”, do “incha!” de cada vez que há um golo.

 

Prioridades trocadas

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O golo, o momento mais singular e bonito do futebol, deixou de ser uma festa para muitos. Mesmo que tenha ficado com um significado de festejo, palavras como essas remetem a celebração para um festejo contra outros, e não para um festejo entre os nossos.

 

Porque foi o Eder que os fodeu. Não foi o Eder que nos deu o melhor momento da seleção sénior num século de história. Portugal ganhou o único título sénior (a Skydome Cup de 1995 não conta) mas os franceses é que foram fodidos. 

 

É óbvio que é possível gostar de futebol ainda. Há finais, grandes jogos, Europeus, Mundiais e muitas outras provas pelas quais ansiar. Há rituais que se conseguem manter se se fecharem todas as janelas inconvenientes e se privilegiar o futebol pelo espetáculo que é. "Basta" escolher ser infoexcluído.

 

Mas isso não quer dizer que o mundo lá fora deixe de existir. Estamos a caminhar para um extremar de posições cada vez mais agressivo e muita gente não parece sequer incomodada. O futebol continuará a ser o futebol, claro, mas já não desperta a mesma paixão. Já não é o futebol pelo qual nos apaixonámos e vibrámos a cada fim-de-semana e jornada europeia, a cada manhã que ansiávamos pelas nove da manhã para ir comprar o jornal ao quiosque.

 

Hoje a suspeição e a acusação reinam. Seria errado pensar que não há nada a mudar e a batalhar para tornar o futebol um lugar melhor, mas quem está nessa guerra vive numa filosofia de que “quem não pensa exatamente como eu, está contra mim”. Já ninguém aceita que possa existir quem seja moderado, quem consiga, apesar de ter um clube, gostar mesmo mais de futebol do que das suas equipas.

 

Já não há confiança em nada. Já não há paciência. Já não há compreensão. Fazemos todos parte de uma enorme conspiração em que só há vítimas e criminosos.

 

Continuo a gostar mas desapaixonei-me. Segui o meu caminho. Não lhe consigo virar as costas mas é como o sol: exposição prolongada faz mal.

 

É um primeiro amor - e esse nunca se esquece - mas tudo o resto à volta mudou.

 

RPS

 

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