Claressa Shields. Não há razão para olhar para trás
Foi campeã olímpica no boxe com 17 anos e quer revalidar o título no Rio. O pai esteve preso durante sete anos, o irmão mais velho ainda está e a mãe é toxicodependente. Durante oito meses, cumpriu o sonho de ser mãe ao adotar a bebé da prima… até se desentenderem. Apesar de tudo, o sonho continua a ser o mesmo: tornar-se profissional.
Boxe sem barreiras
O pai de Claressa Shields chama-se Bo. É um dos ídolos da pugilista. Também ele, quando era novo, praticou boxe, sem grande sucesso. E nem o facto de ter estado preso sete anos o impediu de a influenciar naquela que é a sua maior paixão. Foi ele que lhe falou de Laila, filha de Muhammad Ali, que foi campeã mundial de boxe.
As histórias encantaram Claressa. Ela queria ir para o boxe, o pai não deixava. Ela insistia, o pai não deixava. A mãe não era tida nem achada no assunto: toxicodependente, tinha uma vida demasiado agitada para pensar na filha.
As palavras são da pugilista. «A minha mãe... ela tomava conta de nós, mas eu ficava muito zangada. Nunca havia comida na mesa e tinha sempre homens em casa. Nem todos os homens são maus mas os que ela trazia eram uns pervertidos e abusadores. Tive de lidar com isso durante muito tempo. Sempre que tinha um novo namorado ou trazia um amigo a casa, chegava a um ponto em que começavam a tocar-me. Comecei a contar-lhe mas ela nunca, nunca, acreditou em mim.»
Foi por isso que Claressa viveu muito tempo ou em casa de uma tia, ou em casa de uma avó. Foi essa avó que lhe deu o conselho mais importante: «Nunca deixes que o facto de seres mulher te impeça de fazer o que quiseres.»
Aos onze anos, após sucessivas insistências, Bo cedeu e Claressa foi para o boxe. Era o seu destino, a sua maior motivação e única perspetiva que tinha. «Não via um futuro, a única coisa que via era o boxe. Dos 13 aos 17 anos, o meu sonho era ganhar a medalha de ouro. A minha vida parou. Não via nada para além disso.»
Jogos Olímpicos inéditos
Londres marcou a primeira edição com boxe feminino. A combater em pesos médios, Claressa Shields cumpriu o sonho e bateu a russa Nadezda Torlopova na final. O sonho estava concretizado, agora ia voltar aos Estados Unidos e começar a viver a vida que sempre desejara.
Ou não. «Tive muitas desilusões desde que voltei de Londres. Tive de me afastar de toda a gente que não parava de me dizer o que tinha ou não de fazer, o que tinha ou não de ter. Tive de dar um passo atrás e perceber o que queria ser e como queria sê-lo», conta.
Um primeiro obstáculo foi o treinador, Jason Crutchfield, com quem estava desde os 11 anos. Ele não queria que ela tivesse namorado, muito menos alguém que fosse do ginásio. Mas Claressa e Ardreal Holmes, um pugilista que esteve quase a qualificar-se para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, estavam apaixonados há vários anos e decidiram procurar outro ginásio e outro treinador.
Adoção rocambolesca
O outro problema foi familiar, em 2014. A prima já tinha duas crianças e engravidou de uma terceira. Queria abortar mas não tinha dinheiro. Claressa alimentava o sonho de ser mãe desde os 18 anos e convenceu-a a ficar com a bebé. Durante os primeiros oito meses correu bem, depois tudo se complicou.
«Não correu como esperávamos. Eu e a minha prima deixámos de concordar em algumas coisas. No início, ela não queria ter nada a ver com a bebé. Depois começou a querer alterar os direitos de visita e a impingir-me outras coisas», recorda.
O confronto mudou de nível quando Claressa descobriu que a prima a tinha roubado: «Confontei-a com isso e no dia a seguir apareceu em minha casa com a polícia a dizer que lhe tinha raptado a criança.»
«Podia ter ido para a prisão. Tive de lhes explicar que a criança tinha estado comigo nos últimos oito meses. Que tudo o que tinha estava ali em casa: o leite, a cadeira para o carro, todas as roupas», explica.
Claressa confessa que o incidente a deixou muito magoada mas que ainda assim continuou a querer encontrar um acordo com a prima em relação à bebé, Klaressa. «Ela queria imensas exceções, era demasiado para mim. Disse-lhe que não a ia deixar controlar a minha vida.»
Nas primeiras três semanas, a pugilista ficou doente e perdeu «imenso peso». «Mas agora posso concentrar-me mais no treino. Ainda penso na bebé mas se calhar não era a altura ideal», confessa.
Sacrifícios e a caixa de cereais
Claressa Shields chega ao Rio de Janeiro com 21 anos mas com uma vida que parece ser muito mais longa, com vários sacrifícios que a foram empurrando por caminhos que não esperava mas que chegaram por ir dar à glória olímpica.
«É ótimo chegar a uma prova em que já toda a gente sabe quem sou e o que alcancei. O que as pessoas não sabem é o quão faminta estou de vitórias. É por isso que não perco. Entro em cada combate como se a minha adversária fosse a campeã mundial. Não quero saber de que nível é, vai ter sempre a melhor Claressa Shields pela frente. Por isso ou traz o melhor dela ou vai ao tapete. É como as coisas são.»
Um dos desejos que ainda não realizou é estar numa caixa de cereais: «Olho para a embalagem de Frosted Flakes [famosa por ter imagens de atletas] e penso que devia estar lá. Sinto que trabalhei tanto e sacrifiquei tanto da minha vida que mereço estas coisas.»
Claressa não se importa de aguardar («As coisas boas chegam para quem espera…e eu tenho estado à espera há muito tempo») mas não resiste a marcar as diferenças entre homens e mulheres.
«Se um homem conquista uma medalha de ouro, tem a vida feita. Quando uma mulher ganha, não pensam muito nela. As pessoas têm de perceber que trabalhamos tanto ou mais do que os homens. Temos de passar pelo mesmo, perder peso, ter controlo sobre o que comemos, sacrifícios... Deixamos toda a vida em espera, até ter crianças, para lutar pelo nosso país», realça.
Fazer o possível por Flint
Um dos objetivos de Claressa Shields é poder ajudar a sua cidade, Flint (Michigan), a regenerar-se: «Apesar de já não viver lá, quero voltar e ajudar a comunidade, aqueles que vivem na pobreza, aqueles que têm de lidar com familiares que são mortos ou condenados à prisão. Quero que Flint seja conhecida como uma terra de resiliência. Espero que possamos ultrapassar os problemas e voltar a ser uma grande cidade.»
A pugilista faz o possível para marcar o exemplo: «Quero que as pessoas saibam sempre que é possível, independentemente de onde se vem, de quem são os pais ou o do que se passou enquanto criança, isso não interessa. É por isso que digo que não olho para trás, apenas para a frente. Não há razão para olhar para trás.»
Olhando para a frente, Claressa Shields sabe perfeitamente o que tem no horizonte: «O meu sonho é ganhar outra medalha de ouro e logo a seguir aos Jogos Olímpicos, ou no meu aniversário, fazer um contrato profissional. Quero ter uma grande carreira e combater na HBO ou na Showtime. Com um título já mereço isso, com dois mereço ainda mais.»
RPS