Caster Semenya e as vantagens competitivas
Caster Semenya competiu nos Mundiais de Atletismo na última madrugada. A sul-africana correu os 5000 metros e terminou a praticamente um minuto da vencedora da sua série. Não só falhou o apuramento para a final da prova, como não foi além do 28.º tempo mais rápido em 37 participantes nas duas séries.
A Caster Semenya de 2022 está longe de ser a mesma de 2009. Na altura, com 18 anos, virou o mundo do atletismo de pernas para o ar com o título mundial dos 800 metros, proeza que viria a repetir em 2011 e em 2017. Nos Jogos Olímpicos, conseguiu a medalha de ouro na distância em Londres-2012 e no Rio de Janeiro-2016.
O currículo, invejável, de Caster Semenya esconde o maior motivo pelo qual todos nos lembramos da atleta sul-africana, hoje já com 31 anos. A atleta nunca conseguiu desfrutar dos seus títulos, da sua supremacia, do prazer de ser boa na sua maior paixão. Desde o início, foi arrastada para uma novela onde a testosterona, as hormonas, a masculinidade, o aspeto, as queixas e a inveja foram personagens principais.
A vida de Caster Semenya foi destruída pelas polémicas. A sua privacidade foi invadida a cada novo capítulo de um livro que devia envergonhar todos aqueles que contribuíram para a sua escrita. As adversárias, as federações nacionais, a IAAF e especialistas, reais e virtuais, não foram capazes de aceitar a participação de Caster Semenya como mulher.
Os testes sucederam-se. Os resultados eram divulgados em direto. Caster Semenya queria apenas correr. Primeiro quis-se saber se Caster era de facto uma mulher. Depois, quão mulher seria. Mais tarde, decidiu-se que teria de ser «menos homem» se quisesse continuar a competir. Ano após ano, a discussão adensava-se e contribuiu para que a atleta fosse forçada a fazer um tratamento hormonal para reduzir os valores de testosterona.
Foi a solução encontrada para atenuar uma «vantagem competitiva» que muitos consideravam ser ilegal. A hormona que nunca conseguiram reduzir a Caster Semenya foi a da resistência. A cada acusação, a cada nova regra, a cada golpe, a sul-africana deu a outra face e continuou a competir. Mesmo quando foi proibida de correr os 400, os 800 e os 1500 metros.
Com uma regra feita à medida, Caster Semenya foi afastada das suas provas de eleição. Não desistiu. Tentou chegar aos Jogos Olímpicos de Tóquio nos 200 metros e falhou. Chegou aos Mundiais do Oregon esta semana nos 5000 metros e… foi um fracasso. Mas um fracasso figurativo, porque nem todos seriam capazes de dar esta demonstração de força quando o mundo conspira em conjunto há mais de uma década.
Caster Semenya é vítima de uma sociedade com pouca capacidade de aceitar o cinzento. De uma estrutura com pouca margem de manobra para flexibilizar tabuleiros. De um ambiente em que as adversárias pressionam, respaldadas por entidades e associações presas ao passado.
Não que não devam existir regras, que a federação internacional de atletismo, e o desporto em geral, não deva fazer um trabalho de pesquisa e implementação de um regulamento que permita anular vantagens competitivas injustas. Mas o tema da vantagem competitiva é uma caixa de pandora que, uma vez aberta, pode ser impossível de fechar.
Nas últimas semanas foi dado eco a um estudo que, uma vez mais, revelava que crianças nascidas nos primeiros meses do ano têm muito mais probabilidade de terem sucesso no desporto. A diferença entre alguém nascido a 1 de janeiro e 31 de dezembro pode ser o único fator relevante para distinguir quem fica num plantel, quem é escolhido para uma bolsa, quem fica lançado numa autoestrada para o sucesso.
No limite, poderíamos dizer o mesmo para quem cresce com mais 20 centímetros, quem nasce em certas regiões do globo, quem nasce em famílias endinheiradas, quem tem menos propensão para engordar. Podemos ir ao limite do ridículo sob a sombra das vantagens competitivas.
A verdade desportiva e as vantagens competitivas, legais ou ilegais, nunca irão conseguir esconder a verdadeira conclusão dos últimos 13 anos: Caster Semenya é uma vítima e foi usada como exemplo por quem se limitou a ver números e não teve pudores em trazer para a rua o que tinha de ser cuidado e determinado dentro de portas.
Consigo compreender a sensação de injustiça de uma atleta que tenha tido de competir contra Caster Semenya no seu auge. Mas também eu me senti injustiçado quando tive de jogar contra alguém com o talento de Cristiano Ronaldo. Ou Michelle Brito terá sentido por saber que havia Serena Williams no circuito WTA. Ou qualquer ciclista sente perante a capacidade de resistência de Tadej Pogacar ou Jonas Vingegaard no Tour.
Caster Semenya tinha de facto uma vantagem competitiva. Mas era apenas uma. As rivais não tiveram pudores em juntar-se para acionar a vantagem das burocracias, dos tribunais, do preto e branco.