Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

É Desporto

É Desporto

09 de Abril, 2020

Cassius Clay. A inocência de um campeão adolescente

Especial Jogos Olímpicos (Roma-1960)

Rui Pedro Silva

Cassius Clay

Tinha apenas 18 anos mas chegou aos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, com 100 vitórias em 108 combates. Não era o favorito à vitória – grande parte da imprensa nem sequer o conhecia – mas o seu carisma e personalidade chegaram ao pódio ainda antes do seu talento. Foi o ponto de partida para uma das figuras desportivas mais importantes do século XX.

Os Estados Unidos viviam um período conturbado, com a segregação racial a ser cada vez mais contestada dia após dia, mas Cassius Clay ainda não era Muhammad Ali. Era apenas um adolescente, acabado de sair do secundário, e sem opiniões muito vincadas sobre o tema. Era inocente, com medo das pequenas coisas – conta a lenda que fez a viagem de avião até Roma com um para-quedas montado – e interessado apenas em mostrar ao mundo quem era.

A personalidade era cativante. Podia não ter o mesmo nível de conforto que lhe associamos mais tarde, mas não precisou de muito para se tornar uma espécie de coqueluche da Aldeia Olímpica. Os atletas gostavam dele e os jornalistas sonhavam com um grande resultado que lhes permitisse escrever mais e mais sobre aquele afro-americano que tinha tanta coisa para contar.

Mas Cassius Clay não era favorito. Com 18 anos, e apesar das 100 vitórias em 108 combates na carreira, tinha bastante menos experiência do que os adversários. Porém, assalto após assalto, ronda após ronda, demonstrou ser um diamante em formação.

Yvon Becaus foi o primeiro adversário. Clay só precisou de dois assaltos para eliminar o belga mas não fugiu aos elogios: «É o homem mais forte que já conheci». E assim continuou: o soviético Gennady Shatkov foi afastado nos quartos de final depois de uma decisão unânime e o australiano Tony Madigan teve um fim idêntico na meia-final.

O derradeiro adversário rumo ao ouro olímpico – o momento que marca o início do fenómeno Cassius Clay/Muhammad Ali – foi Zbigniew Pietrzykowski. O polaco demonstrou por que era considerado o principal favorito no início do evento e golpeou Clay como nunca até então, mas o norte-americano, fiel a si mesmo, recuperou, partiu para cima do europeu e garantiu a medalha de ouro em mais uma decisão unânime dos cinco juízes.

Foi neste momento que Cassius Clay foi apanhado pela primeira vez no meio de uma guerra política, quando um jornalista soviético o questionou sobre os espaços vedados a negros nos Estados Unidos. Num tom radicalmente oposto ao que viria a ser a sua imagem de marca, Clay encostou a polémica às cordas e relembrou que por cada sítio onde não podia comer, havia outro que podia frequentar.

O orgulho de ser campeão olímpico valeu-lhe de pouco no regresso a casa. Cassius Clay começou a sentir na pele a essência da pergunta do jornalista soviético e desenvolveu progressivamente um sentimento de revolta contra a escravatura, a segregação racial e os direitos civis. Tornou-se um crítico da Guerra do Vietname, recusando combater, e pôs em risco a sua carreira como pugilista profissional.

Cassius Clay deu origem a Muhammad Ali, quatro anos depois, e o boxe viu também nascer e crescer um dos melhores pugilistas da história. A personalidade e o carisma estavam lá, a experiência e o dom da oratória surgiram com o tempo. Ano após ano, tornou-se cada vez mais uma lenda do desporto e a homenagem nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, na cidade que viu nascer e crescer Martin Luther King Jr., foi tão natural como a sua sede… por triunfos.

Podia não ser o mesmo homem. Podia estar afetado pela doença de Parkinson. Mas naquela noite, ao acender a pira olímpica no estádio, Muhammad Ali recuperou a chama. No evento que o tinha apresentado ao mundo. Foi poético.