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É Desporto

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04 de Fevereiro, 2017

CAN-1996. Quando a Nigéria ficou à porta por causa de Mandela

Rui Pedro Silva

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Ditadura militar de Sani Abacha foi criticada por Nelson Mandela e os nigerianos retaliaram com a ausência na Taça das Nações Africanas em 1996. A geração de ouro das Super Águias não pôde defender o título conquistado dois anos antes e foi banida da edição de 1998.

 

Uma conjugação cósmica

 

Imagine a melhor equipa da história do seu país. Uma geração de luxo, formada a partir de uma conjugação cósmica de acontecimentos que parece uma oportunidade única para alcançar os melhores feitos da sua história.

 

Tudo corre bem. Mesmo que já tivesse havido jogadores melhores, nunca uma equipa foi tão forte, tão sólida, tão capaz de dar o passo em frente e concretizar o sonho de milhões de pessoas. No caso da Nigéria, foi o que se passou na década de 90.

 

Quando as Super Águias venceram a Taça das Nações Africanas em 1994, o onze metia medo: Peter Rufai na baliza, Uche, Uche Okafor, Bem Iroha e Augustine Eguavoen na defesa, Finidi, Oliseh, Okocha e Amunike no meio-campo e Amokachi e Yekini na frente de ataque.

 

A Nigéria até começou a perder, com a Zâmbia, mas um bis de Amunike – na altura ainda antes de saber que jogaria no Sporting e Barcelona – ofereceu o segundo título continental à seleção e abriu caminho para uma excelente prestação no Mundial dos Estados Unidos, ganhando um grupo com Argentina, Bulgária e Grécia e acabando eliminada nos oitavos-de-final pela Itália de Roberto Baggio.

 

Aí, aconteceu o inverso da final da Tunísia no início do ano. Amunike marcou primeiro mas Baggio empatou aos 88 minutos e decidiu o jogo no prolongamento.

 

A política rasteirou o futebol

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Estamos em novembro de 1994. O Quénia tinha sido escolhido para organizar a Taça das Nações Africanas de 1996 mas a desistência abriu caminho para a África do Sul, a dar os primeiros passos pós-Apartheid e com Nelson Mandela na presidência há apenas seis meses, receber o evento.

 

Avancemos um ano. Nelson Mandela tem a ditadura militar na Nigéria, comandada pelo general Sani Abacha, debaixo de olho. A detenção de Ken Saro Wiwa e outros oito dissidentes ativistas abre o processo de negociação, tentando criar um compromisso para que não sejam executados.

 

Sani Abacha não quer saber. Os ativistas, envolvidos nos protestos contra a Shell Oil e os planos de exploração na região de Ogoni, são acusados de homicídio e executados em novembro.

 

Nelson Mandela perde o controlo e aumenta o tom das críticas. «Abacha está sentado em cima de um vulcão e eu vou explodi-lo por baixo dele», atirou.

 

«O que estamos a propor são medidas necessárias que produzirão os resultados que os nigerianos e o mundo desejam. Estamos a lidar com algo ilegítimo, bárbaro, arrogante, uma ditadura militar que assassinou ativistas, usando um tribunal de fantoche e usando provas falsas», continuou.

 

Boicotes dentro e fora do campo

 

A guerra de palavras continuou e o presidente sul-africano apelou ao boicote ao petróleo nigeriano. A resposta dos nigerianos surgiu na semana em que começava a Taça das Nações Africanas na África do Sul.

 

A Nigéria, enquanto campeã em título, não tinha precisado de passar pela qualificação e estava inserida no grupo C com o Gabão, o Zaire e a Libéria. Mas, em cima da hora, as Super Águias anunciaram que não iam marcar presença. Sani Abacha apontava os receios de segurança como justificação.

 

A medida foi desde logo entendida como uma manobra de retaliação às declarações de Nelson Mandela. Mais do que isso, os nigerianos foram acusados de estar a agir de má-fé e a intimidar a Guiné para não aceitar a vaga então criada com a saída da Nigéria.

 

O Ministro dos Desportos da África do Sul, Steve Tshwete, dizia que «nenhum país deve poder manchar a imagem do futebol africano». O secretário-geral da CAF, Mustapha Fahmy, ia mais longe e ameaçava com uma suspensão por seis anos caso os nigerianos não comparecessem.

 

«Isso será muito prejudicial para o futebol nigeriano. E para o futebol africano. E para o futebol mundial», acrescentava.

 

A competição que tinha sido vista como embrionária para o apoio do presidente da FIFA, João Havelange, para o apoio a uma candidatura ao Mundial-2006 estava perdida em polémicas e na Nigéria também havia descontentamentos, com adeptos a juntarem-se em manifestações contra a decisão.

 

O rescaldo

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A Nigéria manteve a sua palavra e não apareceu na África do Sul, deixando o grupo C órfão de uma equipa. Os Bafana Bafana, nome pelo qual é conhecida a seleção sul-africana, não se incomodaram e conquistaram o título, apenas um ano depois de os Springboks terem oferecido a maior alegria a Mandela com o título mundial de râguebi.

 

A geração de ouro das Super Águias foi obrigada a ver de fora mas vingou-se seis meses depois com a medalha de ouro no torneio olímpico de futebol, em Atlanta. A Nigéria acabou por não ser suspensa pela CAF e garantiu o apuramento para o Mundial-1998, onde surpreendeu a Espanha na fase de grupos e caiu com estrondo frente à Dinamarca (1-4) nos oitavos de final.

 

O castigo chegou só na edição desse ano da Taça das Nações Africanas, com as Super Águias proibidas de participar na qualificação devido à ausência de 1996. Foi também em 1998 que Sani Abacha morreu – sem que a causa da morte tivesse sido alguma vez apurada, apesar de suspeitas de envenenamento – e deu origem ao regresso da democracia.