Boavista. Finalmente o Bessa, 27 anos depois
O Boavistão de Manuel José, João Pinto, Ricky, Marlon e muitos mais depois deles. O miúdo que se encantou pelo clube das camisolas esquisitas com seis anos em 1991 entrou pela primeira vez no Bessa. Já nada é igual mas a goleada ao V. Setúbal deu para fingir um pequeno regresso ao passado.
Um gosto renegado
O Boavista é o clube de que mais gosto do qual nunca fui adepto. Quando era mais novo, cheguei a acordar um dia e decidir que ia tentar ser axadrezado, apenas para perceber que estas decisões não se tomam assim, de forma racional, e por muito que os nossos gostos de uma determinada época nos empurrem de forma violenta para um clube.
Tinha seis anos quando comecei a olhar para o Boavista com outros… olhos. Manuel José era o treinador, João Pinto um dos meus jogadores preferidos (já na altura a provocar uma grande disputa entre Benfica e Sporting) e Ricky o goleador de serviço. O futebol era espetacular e os jogos no Bessa, mesmo que raramente passassem na televisão, eram um mimo.
Como? Através da rádio. Com golos atrás de golos, não havia outro estádio que interrompesse mais vezes a emissão. Ali, durante os cinco a dez segundos entre a informação de golo e a perceção de que equipa tinha marcado, a nossa mente vagueava tentando identificar o autor do golo, desenhando a jogada decisiva na cabeça.
O Boavista era assim. E continuou a ser assim durante vários anos. Época após época, as principais estrelas foram saindo mas havia sempre quem ocupasse os seus lugares. Venceram-se Taças de Portugal, Supertaças e eliminaram-se pesos pesados italianos nas competições europeias. Manuel José foi rendido e rapidamente apareceram outras figuras de proa, mesmo que apenas por alguns anos, como Jimmy e Nuno Gomes. Já outros, como Jorge Couto, Timofte e Sánchez ajudaram a prolongar uma magia especial associada ao Bessa.
Sim, o Boavista também foi o Boavista de Valentim Loureiro. E depois de João. Foi o Boavista de Jaime Pacheco e de um estilo mais quezilento, menos apaixonante mas mais pragmático e com resultados práticos impossíveis de criticar: o título de 2001 pode parecer um pouco como o Euro-2016. A equipa merecia mas talvez lhe tivesse sido melhor atribuído na década anterior quando se jogava um futebol mais atraente e espetacular.
E, claro, o Bessa. Durante mais de dez anos, o estádio foi renascendo sem sair do mesmo lugar, substituindo bancada após bancada para se tornar mais moderno, mais bonito e mais acolhedor. O Euro-2004 ajudou mas o projeto já existia e ia a meio. E, verdade seja dita, é um dos estádios mais bonitos do nosso campeonato.
O primeiro olhar
Já o escrevi uma vez na experiência do Belenenses-Estoril no Restelo. Não há momento como aquele em que se vê um estádio pela primeira vez. Quando se sobem aqueles dois ou três degraus que nos oferecem um primeiro vislumbre do relvado, das cadeiras, do cheiro a futebol.
No Bessa, um estádio escondido entre prédios e pouco elevado, a surpresa começa a chegar antes. Quando, esquina após esquina, sentimos que estamos cada vez mais perto. Primeiro só há um adepto com cachecol, depois começam a aparecer vários. De repente, temos uma estrada cheia de gente a fazer tempo até entrar. Não há fila na bilheteira mas a praça junto à estátua da pantera está praticamente cheia. E, como não podia deixar de ser, um dos primeiros que vemos é o famoso Manuel do Laço. Estão lá todos e, desta vez, nem nós faltamos.
Depois de passarmos pela bilheteira, onde a forma como falamos leva, tal como em Espinho, a sermos questionados se somos turistas ou se vimos de Setúbal, decidimos ir de imediato para a bancada. Temos os minutos contados – vamos sair de lá diretamente para a Campanhã e não é garantido que consigamos ver até ao final do jogo -, por isso tentamos aproveitar ao máximo.
O primeiro olhar é exatamente aquilo que esperamos. Ainda falta mais de meia hora – a contagem decrescente num ecrã gigante não nos deixa mentir – e as bancadas estão muito despidas. Não há dúvida que não vai encher, mas não deixa de ser uma visão reconfortante. Especialmente quando imaginamos outros tempos com as bancadas cheias.
Sim, seria fácil escolher um adversário como FC Porto, Benfica ou Sporting para assistir ao Bessa mais vestido, mas isso desvirtuaria o objetivo das nossas experiências. Queremos ver as equipas a jogar em casa com o seu próprio ambiente, não com adeptos importados ao peso que fazem com que os visitantes assumam maior fulgor.
Debate do estado do Boavista
O jogo do Chaves está a terminar e à nossa volta todos comentam as hipóteses do Boavista. É feito um eventual desempate a três, com flavienses e Rio Ave, e manifestam-se diferentes ondas de otimismo relativamente a um lugar que talvez garanta o regresso às competições europeias.
Olhamos em volta e há pormenores que nos chamam a atenção. Primeiro, logo à nossa frente, há dois holandeses que estão como nós, à aventura. Depois, as crianças. Não sou especialista a identificar idades dos mais novos mas não é difícil perceber que dificilmente terão memórias da anterior passagem pelo Boavista na primeira divisão. Finalmente, os cerca de 50 a 100 adeptos do V. Setúbal (sim, aqui também não sou grande perito) que surgem no andar de cima do topo norte para apoiar os sadinos.
Quando o jogo começa, está tudo a postos. Tememos o frio, mas está um final de tarde bonito. É verdade que as bancadas não apanham muito sol no Bessa mas o estádio também está construído de forma a não haver grande corrente de ar. Não será sempre assim, mas estão reunidas as condições para serem umas horas agradáveis.
Futebol em estado… moderno
O jogo corre de feição ao Boavista e a boa disposição reina na bancada. É óbvio que o golo de Henrique logo aos 12 minutos ajuda, mas não é apenas por isso. Tirando nós – e os holandeses – o convívio entre adeptos parece ser o de amigos que se conhecem há vários anos e estão sempre no mesmo sítio.
Sim, isto parece ser óbvio e comum nos estádios do futebol. Mas aqui é a bancada toda. Aquelas 20 a 24 filas repletas de boavisteiros que se conhecem e chegam a conversar entre uma das filas mais próximas do relvado e uma das últimas. De repente, como se a familiaridade já não fosse grande, há um grito atrás de nós: «Alguém tem uma powerbank?».
É o futebol moderno. E não fica por aqui. Minutos depois, há um lance em que o árbitro assinala grande penalidade contra o Boavista que gera muita discussão. Imediatamente, alguém grita insistentemente: «Ó filho da puta, vai ao vídeo-árbitro! Vai ao vídeo-árbitro, ó filho da puta!»
Noutros tempos, a decisão estava tomada e mesmo quem estivesse a ouvir o jogo através de um transístor dificilmente poderia ter mais do que uma segunda opinião do narrador que estava numa posição eventualmente mais privilegiada. Aqui, imediatamente, alguém atrás de nós sacou do telemóvel inteligente e ligou a aplicação que lhe permitiria ver o lance na televisão.
«Está fora da área! Não é penálti! Está fora da área!», repetiu, como que a decidir pelo próprio árbitro e a tranquilizar os adeptos das redondezas ao mesmo tempo. E tinha razão: a decisão foi mesmo anulada e assinalada falta fora da área.
O esboço de uma goleada
A queda de rendimento do Boavista após o golo madrugador assustou os adeptos, perante um V. Setúbal chato e com Edinho a merecer umas bocas da bancada, mas o 2-0 em cima do intervalo deu uma confiança extra para o segundo tempo.
Aí, quando Mateus finalizou a jogada mais bonita do encontro e fez o 3-0 aos 53 minutos, sentiu-se que os pontos estavam atribuídos. E, com o resultado tão desnivelado, não consegui evitar reproduzir na mente um jogo assim mas mais de vinte anos antes. Com Yekini a batalhar contra uma defesa com Pedro Barny e Rui Bento, e Marlon, Ricky e Artur a fazerem a diferença na frente.
José Couceiro tentou fazer o que podia mas parece ter feito pouco mais do que confundir. A própria equipa e os adeptos do Boavista que andaram de cinco em cinco minutos a comentar a posição de Tomas Podstawski: entre os centrais na saída de bola, mais à frente em organização defensiva ou a atacar no último terço do terreno.
No meio deste vaivém, o Boavista aproveitou um ataque rápido para chegar ao quarto e último golo, lançando o mote para o derradeiro exemplo de futebol moderno. Um pouco por todas as bancadas, os adeptos puxaram dos telemóveis e ligaram as lanternas, replicando um gesto cada vez mais visto no desporto atualmente, em que os cachecóis ao alto têm vindo a ser substituídos por aprendizes de pirilampo.
Com o jogo fechado e o tempo a escassear para o regresso a Campanhã, fomos mesmo obrigados a sair mais cedo e a sentir o julgamento (que compreendemos, mas tínhamos circunstâncias atenuantes) de todos aqueles que obrigámos a levantar. Curiosamente, foi esta saída precoce que nos deixou perceber um último apontamento delicioso.
À porta do estádio, os pequenos cubos de cimento estavam todos ocupados por mulheres agarradas ao telemóvel, fazendo tempo para o final do jogo, muito possivelmente à espera dos amigos e namorados. «É como a porta da Primark mas ao contrário.» Na mouche.
RPS/SSM